Em julho, cerca de 700 imigrantes sem documentos, a maior parte deles homens africanos, correram para dentro de uma das mais famosas estruturas parisienses, o Pantheón, e se sentaram sobre o chão de pedra.
Os turistas que visitavam os túmulos de personagens famosas da história francesa – Voltaire, Jean-Jacques Rousseau, Victor Hugo, Marie Curie – foram conduzidos para o lado de fora. Ao longo das horas seguintes, sob a cúpula reverberante do prédio, os manifestantes se revezaram fazendo discursos e entoando cantos sobre seu direito aos famosos valores franceses de liberdade, igualdade e fraternidade.
“Por que não nos colocam na legalidade? Por que não tentam fazer algo por nós? Por que nos humilham? Por que vocês nos ignoram? Não somos objetos. Somos pessoas como vocês”, disse ao microfone um homem sem documentos, diante dos manifestantes espalhados pelo chão, que o aplaudiram balançando tiras de papel.
“Nossos avós lutaram pela França (…) Não vamos mais nos esconder” – disse outro.
Os homens faziam parte de um novo movimento chamado gilet noirs, os “coletes negros”. O grupo de aproximadamente 1.500 ativistas começou a se reunir no começo desse ano, e adotou um nome que remete aos gilet jaunes, os coletes amarelos, cujos protestos contra as perspectivas desfavoráveis da classe trabalhadora francesa sacudiram o país.
Os gilets noirs não poderiam tirar seus coletes nem se quisessem.
Os manifestantes gilets jaunes, na maior parte brancos, adotaram sua denominação a partir dos coletes de sinalização amarelos fluorescentes que vestiam. Se o colete amarelo é um símbolo “engenhoso” pelas associações que estabelece com a classe trabalhadora e sua universalidade – os motoristas franceses são obrigados a levar esses coletes nos carros – o colete negro é um golpe de mestre da metáfora. Os ativistas majoritariamente negros que compõem o movimento dos gilets noirs dizem que estão “negros de raiva” com a situação difícil dos imigrantes sem documentos na França. Eles são marcados pela cor da pele em um país cuja violenta história de racismo e colonialismo continua a definir a vida dentro de suas fronteiras.
Os gilets noirs, em outras palavras, não poderiam tirar seus coletes nem se quisessem. Eles falam especificamente das condições enfrentadas pela classe inferior dos imigrantes na França, e representam um dos movimentos mais visíveis de imigrantes sem documentos que já apareceram no país nas últimas décadas.
Entre 300 e 400 mil imigrantes sem documentos vivem na França. No norte de Paris, cerca de 3 mil imigrantes sem teto montaram acampamentos ao longo das estradas e em lugares públicos, enfrentando uma epidemia de crack, o assédio da polícia, e a pobreza extrema. Muitas dessas pessoas já vinham traumatizadas pelas experiências que as fizeram abandonar seus países de origem e pela perigosa jornada até a Europa.
O movimento dos gilets noirs foi criado com o apoio do coletivo ativista La Chapelle Debout, em uma rede de residências comunitárias para trabalhadores imigrantes, chamadas foyers. Eles realizaram grandes manifestações no aeroporto Charles de Gaulle – de onde pessoas são frequentemente deportadas – e na sede da Elior, uma empresa francesa que emprega imigrantes sem documentos e que foi contratada para fornecer alimentação e serviços de limpeza a centros de detenção da França.
Mas a ocupação do Panthéon foi a ação mais explosiva até agora. Por volta das 16h45 daquele dia de julho, os gilets noirs estavam negociando com a polícia, que queria que eles deixassem o local. De acordo com as pessoas que participaram da negociação, a polícia teria dito aos gilets noirs que não haveria verificação de documentos, nem violência, caso saíssem de forma pacífica.
“Podem sair como chegaram. Não haverá problemas”, disse ao grupo um chefe de polícia, segundo disse um dos manifestantes, Diakite, do Mali (O Intercept não está divulgando os nomes completos dos manifestantes entrevistados para esta matéria, porque eles temem serem perseguidos e deportados caso sejam identificados.) Quando os gilets noirs colocaram os pés na rua pela porta de trás do Panthéon, no entanto, a polícia havia cercado o prédio. “Descobrimos que eles tinham preparado uma armadilha para nós”, contou Diakite.
Segundo os manifestantes, cujos depoimentos são corroborados pelas imagens gravadas, policiais de choque armados com escudos, capacetes, cacetetes e coletes à prova de bala avançaram diversas vezes contra a multidão de gilets noirs. Um deles, Ousmane, contou ao Intercept que quebrou o pé pulando um portão para fugir da polícia. Outro, Carlos, descreveu ter sido golpeado na garganta por um policial antes de ser empurrado para o chão quando as pessoas começaram a correr.
“Todo mundo foi passando por cima de mim, eu estava por baixo”, recorda-se. “Fui esmagado e comecei a gritar, porque não conseguia respirar, porque todo mundo estava correndo, todos estavam indo embora, todos queriam se salvar (…) achei que fosse morrer.”
A newsletter La Voix Des Sans Papiers relatou que os manifestantes teriam ouvido a polícia chamá-los de “crioulos sujos”, e testemunhas contaram ao Intercept que tiveram a impressão de que a polícia estava deliberadamente evitando os manifestantes brancos do grupo.
Cerca de 50 gilets noirs foram levados para o hospital. 37 foram presos. Desses, 21 foram enviados a um centro de detenção onde migrantes são algumas vezes mantidos antes da deportação. Depois de alguns dias de pressão, todos os gilets noirs que haviam sido presos no Panthéon foram libertados.
Como os gilets jaunes, os gilets noirs surgiram em um momento de crescente desigualdade mundial. Miriam Ticktin, professora de antropologia da New School, diz que os forasteiros, incluindo os imigrantes, são frequentemente responsabilizados por esse tipo de mudança. “Muito do discurso de insegurança e medo acaba sendo descontado nos imigrantes. Eles se tornam bodes expiatórios”, explicou ela.
O presidente francês Emmanual Macron foi eleito em 2017 como um reformador centrista, e seu governo é o “mais duro” quanto à imigração que a França já teve nos últimos anos, segundo Cyrille de Billy, secretário-geral da La Cimade, uma organização francesa de ajuda aos refugiados.
A despeito da percepção de que a França estaria absorvendo um grande contingente de estrangeiros, os imigrantes representavam 9,7% da população francesa em 2018, um aumento de apenas cerca de 2% desde 1975, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística e Estudos Econômicos da França. E a França não está nem entre os 10 países que mais recebem refugiados, seja em relação à população, seja em números brutos, segundo dados da Anistia Internacional. Em 2018, a França deferiu um número recorde de solicitações de asilo, mas ainda rejeitou aproximadamente 71% desses pedidos, de acordo com o Asylum Information Database [Banco de Dados de Informações sobre Asilo].
Macron parece estar elaborando sua política de imigração em torno do medo de que aqueles que o elegeram por uma estreita margem em 2017 possam deslocar seu apoio para o partido que atualmente representa o maior desafio à sua reeleição: o xenofóbico partido de extrema direita Rassemblement National, ou partido da Reunião Nacional.
“Você não está evitando a ascensão da extrema direita, mas pode estar dando credibilidade ao que ela diz.”
No ano passado, Macron apresentou um projeto de lei que reduzia o prazo para que as pessoas protocolassem os pedidos de asilo, encurtava o prazo para recorrer das rejeições, e permitia que os solicitantes fossem deportados ainda que seu recurso estivesse pendente. A lei, que entrou em vigor em setembro de 2019, também duplicava o total de tempo pelo qual as pessoas poderiam ser mantidas presas antes da deportação. Os membros do partido RN votaram a favor de partes da lei.
Macron declarou há pouco tempo que a imigração seria um dos principais focos de atenção durante o restante do seu mandato. O presidente afirmou que pretende encarar a imigração de frente, alegando que “a esquerda abandonou o assunto por muitos anos”.
“A burguesia não tem nenhum problema com [a imigração]. Eles não se encontram com ela. São as classes populares que precisam viver com isso”, disse.
Macron também convocou um debate sobre imigração no parlamento francês, que ocorreu no começo de outubro. Durante o debate, o primeiro-ministro da França, Édouard Philippe, declarou que “não teria medo” de estabelecer cotas de imigração.
De Billy considera que a guinada à direita de Macron no tema da imigração é um equívoco. “Você não está evitando a ascensão da extrema direita”, disse ao Intercept. “Mas pode estar dando credibilidade ao que ela diz.”
A deputada francesa Danièle Obono, uma das poucas parlamentares a manifestar seu apoio público aos gilets noirs, chamou de “neoliberal” a pauta de Macron e disse que ele era uma pessoa com “visões muito conservadoras do mundo” que havia se disfarçado de progressista. “O debate sobre imigração é, para ele, uma forma de estruturar e criar uma base eleitoral social, ideológica para suas políticas”, disse ela ao Intercept.
Enquanto isso, os gilets noirs afirmam ter esperança de reiniciar em breve suas ações de grande escala. Sua demanda atual é uma reunião com o primeiro-ministro. Em junho, por intermédio de Obono, líderes do movimento encaminharam uma carta a Philippe. “Pedimos a você que receba uma delegação de Gilets Noirs em Matignon (…) Continuaremos a nos mobilizar e pleitear habitação digna e documentos para todos”, diz a carta.
O primeiro-ministro não respondeu a eles. Depois da ocupação do Panthéon, ele tuitou em francês, sem se dirigir aos gilets noirs pelo nome: “Todas as pessoas que ingressaram no #Panthéon já foram evacuadas. A França é um Estado de Direito, com tudo que isso implica: respeito às regras aplicáveis ao direito de permanência, respeito aos monumentos públicos e à memória que eles representam.”
Diakite, o manifestante, declarou: “A forma como as pessoas sem documentos são agredidas na França, há décadas, permanecendo escondidas, exploradas pelos patrões – [o primeiro-ministro] quer que continuemos assim. Ele quer que continuemos a nos esconder. Não vamos parar até que ele aceite se reunir conosco.”
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