Vocês devem ter visto ou ao menos ouvido falar da entrevista coletiva de Roger Machado, técnico do Esporte Clube Bahia, no mês passado. A derrota por 2×0 para o Fluminense ficou em segundo plano depois da pergunta feita pela repórter Caroline Patatt, do canal FoxSports: ‘Queria que você falasse sobre a importância dessa campanha’, se referindo a iniciativa feita pelo Observatório da Discriminação Racial no Futebol, em que os dois únicos técnicos negros da Série A do Campeonato brasileiro se enfrentaram e entraram juntos em campo com uma camisa contra o racismo no esporte.
A resposta de Roger foi uma aula sobre racismo estrutural e institucional, como disse Caroline: “ele nos quebrou ao meio. Ninguém estava esperando”. Todos esperavam uma resposta protocolar, mas Roger dissecou o racismo dentro de um esporte que ainda não abre espaço para discussão política.
Roger e Marcão, técnico do Fluminense, são os dois únicos técnicos negros da Série A do Campeonato Brasileiro num país com maioria negra. Na Copa do Mundo de 2018, Aliou Cissé, técnico de Senegal, era o único treinador negro do torneio e também o com menor salário. “Sou o único técnico negro nesta Copa do Mundo. Este é um longo debate que não tem a ver com futebol. A cor de sua pele não devia ser relevante em um esporte universal, mas é importante sim ter um técnico negro”, disse Cissé. As falas do técnico na época geraram discussões de como, para os dirigentes de clubes e seleções, o futebol pode ser jogado por pessoas negras, mas não ser pensado por elas.
Além dessas estruturas gigantescas que impedem que pessoas negras ocupem lugares de chefia, temos a mordaça que silencia os atletas. Muitos temem represálias por se posicionaram politicamente em um esporte que ainda dá espaço para racistas, machistas e homofóbicos. Roger não é o primeiro negro a se indignar com a estrutura racista do futebol, mas, hoje, por estar em uma posição de liderança, aproveitou muito bem esse espaço para elevar o nível do debate.
Conversamos com o técnico por WhatsApp sobre o racismo, sua visão política e o como o esporte, principalmente o futebol, pode contribuir para resgatar a autoestima dessas populações que tiveram acessos a direitos básicos negados por séculos.
The Intercept – Você é nascido em Porto Alegre, cidade majoritariamente branca, e hoje mora em Salvador, sendo a Bahia o estado com maior população negra fora da África. Que diferenças você enxerga entre esses lugares na questão do racismo na vida pessoal e dentro do futebol?
Roger Machado – Do ponto de vista da desigualdade, não vejo diferença. A elite soteropolitana é branca como em qualquer lugar. Mas por Salvador ter um maior número do que o resto do Brasil, isso levou alguns negros a chegarem em posições no topo da pirâmide, o que me faz me faz sentir representado.
Relembrando o gesto de Tommie Smith e John Carlos nas Olimpíadas de 1968, com os punhos cerrados como os Panteras Negras, e a luta contra a ditadura no que ficou conhecido como Democracia Corinthiana: há quem diga que esporte e política não devem se misturar. Qual a sua opinião sobre isso?
Minha opinião é que a política está em tudo. Não me refiro a política partidária, que é só uma parte disso. Por que futebol e política não poderiam se misturar? Para mim, parece que afirmar que futebol e política não se misturam é ignorar a potência dessa ferramenta como agente transformador. Ou afirmar que o atleta não tem o direito de ter posições sobre a sociedade, que é, enfim, um cidadão de segunda classe.
Houve críticas do público e da mídia após a sua fala no jogo contra o Fluminense?
Houve críticas, mas não acompanhei. As que chegaram até a mim foram para salientar a coragem em fazer o discurso. Outras em agradecimento, as pessoas se sentiram representadas. Algumas mostrando preocupação com possíveis retaliações por abordar um assunto considerado tabu.
Você vivenciou o futebol como jogador e como treinador. Quais foram as principais barreiras que o racismo te impôs como técnico e como jogador?
Como jogador não sofri barreiras. O racismo estrutural entende que, como jogador, eu estaria num lugar de direito. Ao participar como agente desse espetáculo, nos tornamos mais brancos, o que nos permite no máximo circular em ambientes aos quais normalmente teríamos pouco acesso. Já como treinador, por exercer um lugar de liderança e gestão, em alguns momentos percebo que não me concedem o direito de estar ali. O racismo estrutural não vê, ou não admite, que somos capazes de ocupar atividade que exija competência intelectual para desenvolvê-la. A prova mais evidente da existência do racismo estrutural é a quase inexistência de ex-atletas negros em importantes atividades extracampo, digamos assim. Mas a afirmação não vale para ex-atletas brancos, que circulam com desenvoltura por quase todas as áreas. Para os ex-atletas negros o limite máximo, e os casos são raros, tem sido à beira do campo. Fora dali o negro não é denunciado pela competência ou incompetência, mas pela cor.
O futebol tem um poder quase religioso aqui no Brasil, e os ídolos do futebol tem uma influência gigantesca. Na sua opinião, por que os atletas brasileiros não se posicionam politicamente como vemos acontecer em vários esportes ao redor do mundo?
Porque no Brasil querem fazer acreditar que política e esporte não se misturam. Querem que o futebol fique à parte da sociedade. Mas se agora estamos usando o futebol para discutir racismo, homofobia e machismo, por exemplo, temas para os quais precisamos de políticas adequadas, é a prova de que no ambiente do esporte e do futebol existe sim atividade política. Por que não podemos discutir política? Será que é por conta do racismo estrutural? Além disso, muitos atletas têm medo de uma retaliação do sistema.
‘Enquanto a gente entender que o racismo é um problema individual, um desvio moral, e que a punição é a ferramenta que vai resolver, não vamos avançar.’
A maioria dos grandes jogadores de futebol da história do Brasil são negros. Você acredita que o Brasil teria evoluído em relação ao debate e combate ao racismo caso ídolos como Pelé, Ronaldinho, Neymar e tantos outros tivessem posicionamentos críticos ao racismo?
Quanto mais pessoas de representatividade, independente da raça, discutirem o assunto, mais crescerá a possibilidade de encontrarmos soluções conjuntas para o problema. O machismo só começou a ter atenção quando o feminismo fez a sociedade a refletir sobre o problema. O mesmo acontece com a homofobia, que passou a ser discutido quando a sociedade enxergou que algo precisava mudar e dialogou. Enquanto a gente entender que o racismo é um problema individual, um desvio moral, e que a punição é a ferramenta que vai resolver, não vamos avançar. O que precisa ser discutido está na estrutura da sociedade. Enquanto a sociedade, as instituições, não enfrentarem essas questões, nada mudará. Como imaginar que um país que foi construído sob um modelo escravocrata, onde o indivíduo era máquina de trabalho, subjugada, explorada e subalterna, possa resolver esse problema sem dialogar com ele?
Você enxerga alguma abertura ou interesse dos dirigentes brasileiros para incluir pautas como o combate ao racismo no dia-a-dia dos seus clubes? Iniciativas em relação a isso já são tomadas? Quais?
A minha realidade no Bahia mostra que, quando há vontade de mudança, pode-se fazer. O Bahia, em 2018, criou um Núcleo de Ações Afirmativas, o NAA, que busca discutir esses problemas.
O Esporte Clube Bahia tem dado uma verdadeira aula em outros clubes com as suas campanhas se posicionando politicamente em defesa das minorias. Pode comentar sobre essas iniciativas e como é o do ambiente no clube? Você tem participação nessas campanhas?
O ambiente é melhor possível, pois existe muito respeito dentro do clube. Não participo das ações, pois já existe o NAA, mas todas elas me deixam com muito orgulho de fazer parte do clube nesse momento histórico de transformação.
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