Thursday 31 October 2019

‘A polícia pedia para falar que eu o amava’: a história do maior cárcere privado do Rio Grande do Sul

‘A polícia pedia para falar que eu o amava’: a história do maior cárcere privado do Rio Grande do Sul
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‘Eu sou Josiane Pontes, a mulher que ficou mais tempo em cárcere privado na história do Rio Grande do Sul. Procurem no Google que vocês vão conhecer a minha história’. Foi assim que a Josi se apresentou para mim e outras participantes do Curso Dandaras, que promove a formação política de mulheres negras no Rio Grande do Sul.

Essa simples apresentação de Josiane mexeu comigo e pesquisei mais sobre ela. Em fevereiro de 2010, seu ex-marido, Rodrigo Luciano Luz, inconformado com o fim da relação, manteve Josiane refém por 69h em sua casa no bairro Guajuviras, em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre.

Nesse período, ela foi estuprada pelo ex-companheiro, com a polícia acompanhando a movimentação da casa ao lado de fora. Ele foi indiciado por seis crimes: tentativa de homicídio, ameaça, porte ilegal de arma, sequestro com cárcere privado, furto de veículo e estupro. Rodrigo recebeu a pena de 23 anos, um mês e 15 dias de prisão em regime fechado. Já cumpriu parte da pena e, agora, está em liberdade.

Mas existia uma lacuna nas matérias de jornais que encontrei: nenhuma delas tinha a versão de Josiane. Intrigada, perguntei a ela se me contaria a sua história, os motivos para que o final dessa relação tivesse esse desfecho e o porquê de os jornais não terem a versão dela. “Na época, eu não queria me expor mais do que eu já estava exposta, eram muitos jornalistas. Na verdade, sempre me doía muito falar sobre o que aconteceu, eu sempre chorava, não conseguia, não tinha forças o suficiente para falar. Mas hoje consigo falar, não com naturalidade, mas sem sofrer”, disse Josiane.

Ela me contou sua história durante uma conversa de duas horas em um shopping no centro de Porto Alegre.

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Josiane, ao centro, no curso Dandaras de formação política de mulheres negras.

Foto: Maria Helena Santos

Venho de uma família desestruturada e perdi minha mãe cedo. Tinha 14 anos na época, sendo a mais velha de quatro irmãos. Meu pai era alcoolista. Quando minha mãe faleceu, eu e meus irmãos moramos com nosso pai por um tempo. Mas como meu pai bebia muito, ele não cuidava de nós e acabei virando a ‘mãe’ dos meus irmãos.

Fiz o máximo que pude, mas ficamos sem comida, sem água, sem luz, sem nada. Até o dia em que não aguentei mais. Liguei para meus familiares e falei o que acontecia. Eles vieram nos socorrer e decidiram que era melhor separar eu e meus irmãos. Assim, um vizinho que era padrinho da minha irmã a pegou para criar, enquanto a madrinha do meu irmão ficou com ele — cada um dos meus irmãos foi acolhido por alguém e só sobrou eu.

Mas uma vizinha disse que cuidaria de mim, então fui morar na casa dela. Só que, na verdade, ela me queria para fazer serviços domésticos. Fiquei por lá dois meses, até que minha madrinha veio me buscar.

A casa dessa madrinha ficava na mesma rua da de minha avó, de quem eu cuidava. Conheci meu ex-marido lá. Ele sempre visitava a minha avó e era uma espécie de motorista da família. Era muito cômodo para a minha avó insistir para eu ter um relacionamento com ele, e assim fez.

Eu nunca tive namorado. Ia completar 15 anos quando comecei a namorar com meu hoje ex-marido, que tinha 19 anos. Três meses depois, estávamos morando juntos. Foi tudo muito precoce. Conheci ele, já fomos morar juntos e, dois meses depois, estava grávida. Nunca tinha tido um relacionamento sexual, eu não sabia nada sobre sexo e acabei engravidando.

Durante 12 anos tudo o que eu fazia tinha de fazer com ele.

Ele estava me protegendo, me dando uma casa, coisas que eu não tinha. Até então, eu não sabia o que era segurança familiar. Para mim, ele era uma salvação diante da situação em que estava minha vida. Era um príncipe encantado.

Ficamos casados durante 12 anos, e eu achava tudo muito tranquilo. Ele não tinha nenhum vício, era meu companheiro, tudo era muito intenso. Era uma paixão muito forte, mas eu não podia ter amigas nem visitar meus familiares sozinha. Por um período, achei que tinha de ser assim mesmo. Durante 12 anos tudo o que eu fazia tinha de fazer com ele.

Até parei de estudar uma época. Era sempre nós dois juntos para tudo. Mas engravidei de novo e, durante a gravidez, comecei a ler e me encantei pela leitura. A leitura começou a me dar um leque de ideias, críticas e reflexões. Comecei a pensar “meu Deus, a forma como ele age comigo é errada, tenho que sair dessa vida”.

Nesse período, consegui recuperar a casa dos meus pais — que havia sido invadida —, e fomos morar nela. Foi aí que me senti mais segura – pelo menos agora eu tinha uma casa. Eu precisava me libertar. Não podia ser dependente dele daquela forma porque eu não tinha trabalho nem nada, e precisava estar sempre com ele.

Se houvesse uma festa de família e ele não quisesse ir, eu não ia também. A mesma coisa acontecia quando meus irmãos me visitavam. Ele ficava com ciúmes, porque sempre dei muita prioridade para eles, como se fossem meus filhos.

Então decidi terminar o ensino médio a distância. Estudava em casa e ele me levava para fazer as provas. Abrimos um quiosque de lanches e começamos a trabalhar juntos também. Abríamos às 7h e fechávamos às 22h. Sempre só nós dois.

Até o dia em que um cliente nosso chegou ao quiosque e falou para mim coisas sobre o carro em que o Rodrigo estava. Após essa conversa, comecei a desconfiar e juntar os pontos. Fazia sentido o que o cliente havia dito. Foi o ponto final da relação com meu ex-marido. Confirmei que ele trocava de carro de maneira ilícita e vi que eu estava arriscando a vida dos meus filhos por uma pessoa que eu achava conhecer, mas que não conhecia de verdade.

No mesmo dia, eu disse para ele: “eu não quero mais, estou arriscando a vida dos meus filhos, estou me arriscando, eu estou me sentindo mal com toda essa dominação em relação a mim, eu não quero mais”. Em resposta, ele olhou para mim e disse: “Se tu não queres mais, então um de nós vai morrer”.

Ele disse isso tranquilo. Eu me mantive firme e repeti que não queria mais mesmo. Não sei como tive forças, mas o expulsei de casa, afinal a casa era minha. Mesmo que tenha sido um processo muito demorado, eu estava mais forte, já tinha terminado o ensino médio e prestado vestibular para o curso técnico em Biblioteconomia da UFRGS, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mesmo que ainda não soubesse o resultado, já tinha feito o processo seletivo e me sentia mais confiante com o futuro.

Rodrigo não quis sair de casa, então chamei meu irmão, contei o que aconteceu e disse que eu não queria mais. Pedi para que o levasse para a casa dos pais de meu ex-marido — eles moravam no mesmo bairro —, assim Rodrigo não ficaria sem assistência, teria para onde ir. Com a ajuda do meu irmão, ele foi.

Durante os sete meses que ficamos separados foi uma perseguição total. Ele realmente foi para a casa dos pais dele, mas, todos os dias, quando eu o via, ele estava rondando a minha casa. Quando visitava os filhos, ele fazia chantagem. Ele falava coisas como: “papai ama mamãe e mamãe não ama o papai”. Eu, pelo contrário, sempre tentei mostrar um outro lado, para não fazer meus filhos sofrerem.

Até que um dia que saí com minha filha para ir até uma lan house bem próxima de casa para ver o resultado do vestibular. Eu consegui, fui aprovada, estava feliz e contente quando ele começou a nos seguir de carro. Não o vi até perceber que ele estava em cima de nós como se fosse me atropelar. Ele abriu a porta e arrancou a menina dos meus braços, a colocou dentro do carro e a levou embora dali. Ele estava completamente descontrolado. Fez aquilo só para me assustar. Depois disso, largou a menina em casa, fez para mostrar que sabia onde eu estava, que sabia todos os meus passos.

Acreditando no sentimento de amor dele por mim, pedi para o meu irmão mais novo me ajudar e levá-lo pra casa dos familiares dele em Santa Catarina. Quem sabe ele me esquecia lá. Meu irmão foi muito prestativo. Largou a vida dele e foi com ele para lá, ficando junto dele por alguns meses. Mas ele enganou meu irmão e, sem ele perceber, voltou de carro para Canoas, chegando lá em casa às 21h. Me chamou na frente de casa e fui atender. Disse que queria ver as crianças, mas elas já estavam dormindo. Ele estava tranquilo e disse que voltava outro dia. Nisso, eu entrei em casa, quando fechei a porta, ele já a abriu, e tudo começou.

Reprodução: Record News

69h de cárcere privado

A ideia dele era me tirar de dentro de casa para me matar. Ele foi me empurrando para o pátio, me agredindo, puxando pelos cabelos. Mostrou uma agressividade que eu não conhecia. Durante todo esse tempo, eu pensava que não podia correr porque ele poderia atirar nas minhas costas — ele me mostrou que estava armado. Resisti e fui com ele para dentro de casa. Só pensava que se ele me levasse, seria pior. Pensei que precisava suportar aquilo até às cinco da manhã, o horário que minha irmã iria chegar para pegar seu uniforme e ir trabalhar. Na época, ela estava morando comigo. Pensei que ela seria a minha salvação e que eu só precisaria suportar até um pouco antes das cinco horas.

Nesse momento, a minha filha acordou. Ela sempre foi uma criança muito esperta e, de alguma forma, ela tentou me ajudar, pediu para dormir com ela. Daí ele falou pra mim: “tu não vai deitar com ela, agora tu se despede dos teus filhos”. Essas palavras me cortaram a alma.

Mas eu tinha que me manter totalmente calma, não demonstrar desespero perante as crianças, pois não sabia o que ele seria capaz de fazer. Eu falei pra minha filha: “a mãe não pode deitar agora, fica quietinha que depois a mãe vem”.

Eu tinha que me manter firme ali com ele. Foi quando aconteceu, ele me estuprou pela primeira vez. Eu tentei lutar contra aquilo, mas ele me deu uma coronhada na cabeça. Nisso, já estava próximo das 5h e escutei um barulho de moto no portão. Era minha irmã chegando com o noivo dela. Pensei que estava salva. Quando a minha irmã foi abrir o cadeado do portão, ele gritou: “não abre que eu estou armado e vou atirar”, e minha irmã gritou de volta: “eu vou entrar, a casa é minha”.

Ela insistiu tentando abrir o portão, daí ele deu um tiro da janela que atingiu meu cunhado. Minha irmã saiu dali e foi pra delegacia prestar queixa. Foi aí que se montou todo um cenário de pânico, toda uma estrutura de muitos policiais, muita gente, os vizinhos, todo mundo tentando me libertar de dentro de casa.

Dois negociadores conseguiram libertar as crianças pela manhã. O alvo dele era eu. Fiquei muito aliviada com as crianças livres, mas não completamente, pois permaneci apavorada durante aquelas 69h. Enquanto a polícia estava do lado de fora, ele me estuprava e violentava, eu só pensava: “tu vai me pagar, se eu sair viva daqui tu vai me pagar”, de tanto nojo que eu sentia dele. Em um desses momentos, ele me disse: “de que forma tu quer morrer”, e apontando pra minha cabeça dizia: “tu quer um tiro na cabeça”, e depois apontando pro meu coração dizia: “ou tu quer um tiro no peito”. Foram momentos de terror.

Teve um momento que eu disse para ele que estava muito cansada de tudo aquilo e pedi para jogar um joguinho no meu celular. Ele deixou. Foi nessa hora que consegui mandar uma mensagem pro meu irmão, dizendo que estava sendo violentada e não aguentava mais. Foi assim que a polícia começou a ligar e pedir umas coisas absurdas. Diziam para eu falar pra ele que eu o amava e que nós íamos ficar juntos, mas eu não consegui dizer isso. E ele escutava tudo que a polícia falava ao telefone. Era para ser mais uma forma de auxílio, mas tudo o deixava mais irritado.

Isso sem falar das equipes das emissoras de televisão que acompanhavam do lado de fora da casa. Nós sabíamos tudo o que acontecia do lado de fora porque os jornalistas mostravam tudo e ainda diziam os lugares em que estavam os atiradores de elite. Toda a movimentação deles passava ao vivo na televisão. Eu sabia que os policiais não iriam conseguir entrar na casa por causa das barras de ferro e os sacos de cimento de uma obra que eu estava fazendo e que ele colocou para trancar a passagem. Até que o meu irmão, que estava com ele em Santa Catarina, veio de lá até Canoas falando com o Rodrigo ao telefone. Meu irmão começou a dar mais segurança porque começou a ter medo de morrer quando saísse dali. Quando meu irmão chegou de Santa Catarina, ele abriu a porta e me liberou.

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Josiane Pontes cercada dos filhos e dos irmãos no dia de sua formatura em Biblioteconomia na UFRGS. Acima, abraçada à sogra, mãe de Rodrigo.

Foto: Arquivo pessoal/Josiane Pontes

A vida depois do cárcere

Quando eu saí, fui para o hospital e fiz exames para constatar os estupros. Tive que tomar por um período aquele coquetel anti-HIV, porque estávamos há sete meses separados. Fiquei um tempo morando na casa do meu irmão. Logo nas primeiras semanas, tive um acompanhamento com um psicólogo oferecido pela prefeitura de Canoas, mas foi por um curto período de tempo. Depois eu mesma procurei um tratamento com um psiquiatra. Tive problemas psicológicos, bipolaridade e síndrome do pânico.

Também busquei um espaço de convivência, as Mulheres da Paz, um grupo de fortalecimento de mulheres vítimas de violência doméstica, do qual eu me tornei membro. Permaneci dois anos nesse grupo. Até hoje busco estar com outras mulheres, fazer cursos que me fortaleçam e foi por isso que me inscrevi no Curso Dandaras. Estar com mulheres que sofreram ou sofrem as mesmas dores que eu passei é muito bom para eu perceber que não estou só. Normalmente, as pessoas não me conhecem, não sabem da minha história, mas escutar e ser ouvida é algo muito bom. A cada encontro me sinto mais fortalecida.

Mas no início não era assim. Eu tinha tanta dor de falar sobre o que aconteceu, inclusive com meus filhos. Queria tanto protegê-los de tudo aquilo que sentia, não queria que eles sofressem mais e não falava nada. Afinal, era o pai deles, e não queria colocar eles contra o próprio pai. Eu já havia sofrido bastante por causa do meu pai, principalmente na infância, quando escutava a família da minha mãe falar mal dele. Por mais que soubesse o quanto ele era um carrasco com a minha mãe, que ele abusava da bebida, aquilo ali me doía muito porque ele era meu pai. Eu cresci ouvindo: “teu pai não presta, teu pai é um bêbado”, então não queria fazer isso com meus filhos. Então fixei isso na minha cabeça: “em nenhum momento vou falar mal desse pai para os meus filhos e vou sustentar isso até o momento em que eles acharem que ele não é um bom pai, mas isso tem que vir deles, não sou eu que vou dizer isso”.

Nunca tive medo de voltar atrás e até mesmo de morrer.

Mas, no decorrer desses anos, eu tive de falar com eles sobre isso. A mãe do Rodrigo, minha ex-sogra, ficou doente e eu a cuidei. Um dia, ela me trouxe uma carta dele do presídio, dizendo que teria uma apresentação dos detentos para os filhos e eu teria que levar meus filhos lá. Pensei em não os levar porque aquele não era um lugar pra eles, mas, ao mesmo tempo, ficava pensando se quando eles crescessem não iriam me punir por eu nunca ter deixado que eles vissem o pai. Mas criei coragem e levei meus filhos lá no presídio. Assisti a apresentação ao lado deles sofrendo, mas fiquei ali com eles. Eles conseguiram se aproximar um pouco desse pai, o abraçaram e eu fiquei assistindo tudo com um nó na garganta.

Depois desse encontro, eu ficava procurando sutilmente saber se eles queriam alguma outra aproximação. O menino sempre ficava muito quieto, muito calado e eu pensava que ele queria ver esse pai, mas não me falava pra não me magoar. Então eu falava que, quando ele completasse 18 anos, ele poderia ir visitá-lo, mas enquanto ele fosse menor de idade eu não o levaria. Já a menina sempre dizia que não tinha pai, ela colocava pra fora dizendo “eu não quero ver esse cara, nem sei quem ele é”.

Dois anos depois, eles foram meus cupidos desse companheiro que estou até hoje. Minha filha começou a chamá-lo de pai. Meu companheiro dizia que, quando o meu filho fizesse 18 anos e quisesse ver o pai, ele iria junto. Quando chegou esse dia, o levamos. Mas meu filho saiu de lá decepcionado, porque Rodrigo não deu bola para ele, só ficava de beijos e abraços com sua nova companheira.

Rodrigo nunca deu nenhuma assistência para os filhos, nunca ligou, até hoje nunca pagou uma pensão. Mas um dia encontramos, minha filha e eu, com ele numa loja de Canoas. E ele me pediu perdão, disse tinha errado, que eu sempre fui uma ótima mãe e uma ótima mulher.

Nessa época, eu ainda sentia muita raiva dele, a minha vontade era falar muitas coisas pra ele, mas, na hora, a minha garganta embargou. Já faz quase dois anos que isso aconteceu, e eu estou esperando até agora alguém do estado vir me avisar que ele foi solto. Nem a Patrulha Maria da Penha bateu na minha porta, nada, eu estou sem assistência do estado até o momento.

Hoje em dia, tento auxiliar outras mulheres vítimas de relacionamentos abusivos. Quando estamos dentro de um relacionamento o qual não sabemos que é abusivo, temos que tirar forças até sair desse relacionamento, custe o que custar, e foi o que eu fiz. Nunca tive medo de voltar atrás e até mesmo de morrer. Nenhuma mulher gosta de apanhar, nenhuma mulher gosta de ser violentada ou humilhada, nenhuma pessoa gosta de viver assim. Hoje compreendo que tem milhares de outras Josis espalhadas por aí que se reergueram ou ainda estão sofrendo. E é isso que passo para minha filha, a gente não pode se calar, é melhor morrer lutando.

 

*O Intercept entrou em contato com a Brigada Militar do Rio Grande do Sul sobre a reclamação de Josiane disse não ter sido informada pela patrulha Maria da Penha sobre a soltura do ex-marido. A assessoria de imprensa da BM gaúcha informou que Josiane não possui medida protetiva e, por isso, não foi informada da decisão. Segundo a BM, o órgão só teria a obrigação de comunicar a vítima nestes casos.

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Meet the Spiritual Leader of the Hong Kong Protests

HONG KONG—When reports of a possible law banning face masks at protests first surfaced this month, chat groups and online messaging boards popular with demonstrators lit up in fury over what seemed to be yet another (ultimately unsuccessful) attempt to quell unrest here.

Attention quickly turned to a snippet of a by-election debate from 2016, specifically to the words of a young man standing with other hopefuls on a U-shaped stage, his bright-blue hoodie and khakis a marked sartorial departure from the formal attire of his older rivals. In the debate, Edward Leung, his right hand gripping a microphone and his left jabbing the air with an outstretched index finger, unleashed a tirade that three years later looks uncannily prescient.

“Ukraine passed the anti-mask law a few years ago. Do you know what happened to Ukraine after that?” Leung asked. “It resulted in a revolution. If you want to play this game, by all means, do it. I am all for that.” The two candidates receiving the brunt of Leung’s verbal lashing looked bowled over. “If you want to restrict our freedom of assembly, go do it. Let’s see what Hong Kongers, what all of us, will do to you.”

When Carrie Lam, Hong Kong’s leader, confirmed the rumors of the mask ban, days of spontaneous peaceful rallies, as well as some violent demonstrations, ensued across the city. Dozens were left injured after clashes between protesters and police, including a 14-year-old boy shot by an undercover officer, who was as a result left bloodied by demonstrators and attacked with petrol bombs.

[Read: From Asia’s finest to Hong Kong’s most hated]

The developments have only served to reinforce the idea, particularly among younger, frontline protesters, that Leung is the spiritual guide of this otherwise leaderless movement. It is a status he has won despite—or perhaps because of—his incarceration: Leung, who has offered little commentary on these protests, which are now in their fifth month, is serving a six-year sentence for his part in demonstrations that turned violent in 2016.

It is Leung’s 2016 election slogan, “Liberate Hong Kong, revolution of our times,” that rings out today, one of the several chants that are now mantras for those who have taken to the streets. The phrase (or similar translations of it) is printed on flags and banners and spray-painted on walls. Detained protesters have looked into TV cameras and mouthed the words as they are taken away by the police. A video game that pits protesters against police uses the slogan as a title. Leung’s supporters, some of whom speak about him in hagiographic terms, say he foresaw the direction that Hong Kong would take as Beijing sought to wield greater influence here. This month, hundreds gathered outside a Hong Kong court for Leung’s appeal hearing, waiting for hours to catch a glimpse of him and briefly blocking the van transporting him back to prison.

Cast even by traditional pro-democracy champions here as radical just a few years ago, Leung’s prognostications about the rapid erosion of Hong Kong’s rights look to have been correct. The more confrontational, sometimes violent, means that Leung and Hong Kong Indigenous, the pro-independence political party of which he was a member, advocated in countering encroachment from mainland China are consequently gaining mainstream approval. As protesters have ramped up tactics, vandalizing businesses owned by mainland Chinese and tossing petrol bombs at police seen as loyal to Beijing, people are generally accepting of the violence, leveling blame at the authorities for the escalation. Leung’s willingness to risk arrest was once seen as extreme. Now many hard-core demonstrators no longer fear police tear gas, nor does the threat of arrest deter them—more than 2,700 protesters have been arrested since June—while the most fervent openly speak of the possibility of dying in the streets. “Edward Leung and Hong Kong Indigenous planted a seed in Hong Kong politics, and now it has started to grow,” Ray Wong, who founded the party in 2015, told me. “It really took some time for those Hong Kongers, for those peaceful protesters, to understand why we took this approach.”

[Read: Hong Kong’s new reality]

Leung is an unlikely oracle, having described himself in much less flattering terms than his supporters do today, often saying he was a loser, a nobody. The 28-year-old studied philosophy at Hong Kong University, where he was an intensely competitive lacrosse player and served as a residency-hall leader. In Lost in the Fumes, a 2017 documentary about Leung, he spoke about feeling lost at the time, having failed to graduate or get a job, at times locking himself away in his room. Then, in September 2014, he joined the Umbrella Movement protests, finding camaraderie and direction among his fellow protesters. “It seemed suddenly my life was meaningful,” Leung said in the film.

Wong, 26, also participated in those protests, but over the course of the 79-day occupation grew disillusioned. When the protests ended, he founded Hong Kong Indigenous, a party championing “self-defense, more radical means of protest, and … our unique identity as Hong Kongers,” he told me. It fell into the “localist” movement, a group of political parties and activist groups holding a spectrum of ideas on Hong Kong’s autonomy. The beliefs of some of these groups have at times veered into the xenohobic, with members demeaning mainland visitors as locusts invading Hong Kong.

In the past, Leung has described his idea of localism as rooted in the safeguarding of a Hong Kong identity distinct from that of mainland China, to “preserve our own narrative on the past, present, and future of Hong Kong.” This idea, of keeping Hong Kong from becoming just another Chinese city, protecting it from Beijing’s control, has come to drive the current protests. Polling from the Chinese University of Hong Kong in October showed that the number of people identifying as localists has more than doubled since March. Yet it is the most radical of Leung’s beliefs, one that still remains fringe, for which he is most notorious: advocating for independence. “It might be very unrealistic; it might be nearly impossible,” he said, “but in terms of politics, in terms of rational calculation, independence is the only way to leave this authoritarian regime,” a reference to the Chinese government.

[Read: Hong Kong’s protesters are outfoxing Beijing worldwide]

When Wong met Leung after the Umbrella Movement ended, Leung was again struggling, even contemplating suicide. Then, in July 2015, Leung took the stage at an annual protest and delivered a speech that, Wong recalled, “impressed all of our members.” Hong Kong Indigenous, which had focused on street-level activism that included haranguing mainland tourists and sometimes violent protests targeting small-scale day traders from China, made the decision to formally enter mainstream politics by contesting elections.

The party’s positions, as well as its youthful and at times boisterous members, put it at odds not just with pro-Beijing politicians. It also clashed with the traditional pro-democracy camp, who it felt was overly willing to compromise and did not take sufficient action. The feelings of dislike and distrust went both ways.

“I thought he was arrogant, full of himself,” the pro-democracy lawmaker Claudia Mo said of her first impressions of Leung. Her feelings, she told me, softened over time, and she has visited Leung in prison on multiple occasions, most recently in September. This summer, after protesters stormed the building housing Hong Kong’s legislative assembly, lawmakers were given a tour to see the damage. Inside, Mo said, was a spray-painted message calling for Leung’s release. “I knew then he had become an icon,” she said.

Leung’s fame rose precipitously during Chinese New Year in February 2016. In the cramped, hectic Mong Kok neighborhood, officials tried to crack down on unlicensed street sellers who for decades have hawked food like fish balls and egg waffles. The threat to a deeply rooted Hong Kong tradition was exactly the sort of cultural erosion Leung had warned of. Hong Kong Indigenous rallied around the sellers, putting the call out online for their supporters to take to the streets to protect them. During the ensuing standoff with police, Leung commanded the crowd through a megaphone. As the night wore on, protesters and police continued to jostle, before erupting into clashes. Warning shots were fired, and though the violence looks subdued compared with recent protests, it was at the time some of the worst unrest in post-colonial Hong Kong.

Leung was arrested along with dozens of others. While he gained a new level of celebrity, he later described the days as “like hell.” He was charged with multiple counts of rioting and assaulting a police officer. Less than three weeks later, voters cast their ballots in the New Territories East by-election, during which Leung had unleashed the debate tirade. He finished third, but captured more than 15 percent of the vote, a remarkably strong showing for a political newcomer. Alvin Yeung, a pro-democracy lawmaker who won the election, told me that while he disagreed with Leung’s politics, he found him to be strong competition, and nodded to his prescience. “People dig out what he said three years ago—against a brutal government, against the anti-mask law—and people think, Hey, he foresaw everything,’” Yeung said.

Leung was later barred from contesting subsequent elections that year—officials cited his support for Hong Kong’s independence as their reasoning. By then, Leung had disavowed that position, but it was too late. He was among a rash of invalidated nominees, and threw his support behind another young localist candidate who was later himself expelled from the legislature. Leung then left Hong Kong for the United States in 2017 to study at Harvard University.

The following year, Leung admitted to assaulting an officer and apologized. Having returned to Hong Kong, he was sentenced to six years in prison, a sentence widely decried as overly harsh. Wong, who also faced charges over the Mong Kok unrest, skipped bail and fled to Germany, where he was granted asylum. (Even from jail, Leung has frustrated election officials, who this month questioned candidates running in next month’s local elections, asking them to explain their understanding of his slogan after they posted it on social media.)

Leung’s only public comments on the current set of protests came in July, when a letter addressing the movement was posted on social media. He wrote that he tried to keep up with the news from prison, but that the reports left him “filled with sorrow and pain.” He urged protesters to avoid being driven by rage: “I earnestly call on you not to be dominated by hatred—one should always stay vigilant and keep thinking when in peril,” he wrote.

Wong, for his part, has watched the protests play out from afar. This summer, a friend recorded a crowd shouting Leung’s slogan and sent it to him. “The first time I heard it, I cried immediately. I didn’t expect that this slogan would be chanted again,” he told me. “Before [Leung] was sent to prison, he had quite a lot of doubts as to whether he did something wrong or good for society.

“I think now when he sees people chanting this slogan and people kind of worshipping him,” Wong continued, “he would feel better.”

Wednesday 30 October 2019

‘Segredos Oficiais': a verdade por trás da Guerra do Iraque

‘Segredos Oficiais': a verdade por trás da Guerra do Iraque

“Segredos Oficiais”, que estreia amanhã no Brasil – nos Estados Unidos, saiu em agosto – é o melhor filme já feito sobre as circunstâncias que antecederam à Guerra do Iraque. Admiravelmente preciso e fiel aos fatos, o longa deixa o espectador com uma sensação de desânimo, esperança e raiva – tudo ao mesmo tempo. Imperdível.

Muitos já esqueceram, mas a Guerra do Iraque e suas abomináveis consequências – centenas de milhares de mortos, a ascensão do Estado Islâmico, o caos na Síria, e talvez até a presidência de Donald Trump – por pouco não aconteceu. Nas semanas anteriores à invasão – iniciada em 19 de março de 2003 –, a campanha dos EUA e do Reino Unido a favor da guerra parecia fadada ao fracasso. O lobby dos falcões anglo-americanos era um velho calhambeque caindo aos pedaços, prestes a dar seu último suspiro.

Naquele breve momento, a diplomacia de George W. Bush parecia ter chegado ao limite de suas forças. Seria extremamente difícil os americanos invadirem o Iraque sem o apoio dos ingleses, seus fiéis escudeiros. Mas, no Reino Unido, a ideia de declarar guerra sem o apoio do Conselho de Segurança da ONU era extremamente impopular. Além do mais, agora sabemos que Peter Goldsmith, procurador-geral britânico, havia dito ao então primeiro-ministro Tony Blair que a resolução aprovada pelo Conselho de Segurança contra o Iraque em novembro de 2002 “não autoriza o uso da força sem uma nova determinação do Conselho”. Michael Wood, principal conselheiro jurídico da pasta de Relações Exteriores do Reino Unido, fora ainda mais duro: “Usar a força sem a autoridade do Conselho de Segurança seria um crime de agressão”. Ou seja, Blair precisava desesperadamente da anuência da ONU. Para a surpresa geral, porém, o Conselho de Segurança, composto por 15 países, teimava em resistir.

No dia 1º de março, o jornal britânico The Observer jogou uma bomba numa situação que já era extraordinariamente tensa: o vazamento de um e-mail datado de 31 de janeiro e assinado por um alto funcionário da NSA, uma agência de espionagem norte-americana. Falava-se em grampear as delegações dos países membros do Conselho de Segurança – “com exceção dos EUA e do Reino Unido, é claro”, brincava ele no e-mail – e de outros países não-membros que pudessem fornecer informações úteis.

Isso provava que Bush e Blair estavam blefando quando afirmavam querer que o Conselho de Segurança votasse uma resolução definitiva sobre o assunto. Eles sabiam que eram minoria. Embora reivindicassem a necessidade de uma invasão no Iraque para preservar a eficácia da ONU, ambos os líderes não tinham escrúpulos em pressionar – e até chantagear – seus colegas no Conselho de Segurança. E o fato de isso ter vazado demonstra que o plano da NSA era esdrúxulo o suficiente para que alguém de dentro da labiríntica comunidade de inteligência arriscasse a própria pele para denunciá-lo.

Esse alguém era Katharine Gun.

Interpretada com maestria por Keira Knightley em “Segredos Oficiais”, Gun trabalhava como tradutora na Sede de Comunicações do Governo – a equivalente inglesa da NSA. À primeira vista, “Segredos Oficiais” é um simples filme de suspense. Nele, vemos como Gun teve acesso ao e-mail, por que e como o vazou, por que confessou logo em seguida, as terríveis consequências que enfrentou e a singular estratégia jurídica que obrigou o governo britânico a retirar todas as acusações contra ela. Na época, Daniel Ellsberg, autor de um vazamento de documentos secretos do Pentágono nos anos 1970, disse que os atos de Katharine Gun haviam sido “mais oportunos e importantes do que os Pentagon Papers”, e querevelações como esta podem impedir uma guerra”.

Mas o filme vai ainda mais longe e, de forma mais sutil, faz a seguinte pergunta: “Por que o vazamento não fez diferença?” Sim, é verdade que o escândalo aumentou a oposição aos EUA e ao Reino Unido no Conselho de Segurança, que nunca chegou a deliberar novamente sobre o Iraque, pois Bush e Blair sabiam que seriam derrotados. Mesmo assim, o primeiro-ministro inglês conseguiu o apoio do Parlamento britânico para a guerra algumas semanas mais tarde.

A grande resposta para a pergunta acima, tanto no filme quanto na vida real, está na grande mídia dos EUA. “Segredos Oficiais” desnuda a desonestidade intelectual da imprensa americana, que se prontificou a ajudar seus queridinhos no governo Bush, protegendo-os do escândalo.

É fácil imaginar como a história poderia ter sido diferente. Os políticos britânicos, assim como os americanos, não gostam de criticar as agências de inteligência de seus respectivos países. Mas a grande mídia americana poderia ter atraído a atenção do Congresso dos EUA se tivesse dado a devida atenção ao furo do Observer. Isso, por sua vez, seria um incentivo para que parlamentares britânicos se opusessem à guerra e exigissem explicações. O argumento a favor da guerra estava se desintegrando tão rápido que qualquer demora, por menor que fosse, poderia adiar a invasão indefinidamente. E se Bush e Blair insistiram tanto no assunto é porque sabiam disso.

No mundo real, todavia, o New York Times não publicou quase nada sobre o vazamento nas quase três semanas que antecederam a invasão. O Washington Post veiculou apenas um artigo de 500 palavras na página A17 – e com a seguinte manchete: “Relatório de espionagem não choca a ONU”. Da mesma forma, o Los Angeles Times publicou apenas uma matéria antes da guerra, cuja chamada já explicava: “Forjado ou não, há quem diga que não é nada de mais”. Entrevistado pela reportagem, um ex-alto funcionário da CIA chegava a levantar suspeitas sobre a veracidade  do vazamento.

E foi justamente esse o argumento mais eficaz para neutralizar a reportagem do Observer. Como o filme mostra, em um primeiro momento a TV americana ficou muito interessada no vazamento. Mas os convites aos repórteres do jornal britânico cessaram quando o Drudge Report, um portal de notícias conservador, passou a espalhar a informação de que o e-mail seria obviamente falso. Por quê? Porque continha palavras escritas com a grafia britânica e, portanto, não poderia ter sido redigido por um americano.

Na verdade, o vazamento original usava a grafia americana, mas, antes de ser publicado, a equipe de apoio do Observer adaptara o texto à forma britânica, o que passou despercebido pelos repórteres. E os canais americanos, como sempre, curvaram-se à pressão dos ataques da direita. Quando a questão foi finalmente esclarecida, a mídia já não tinha o menor interesse em repercutir o furo dos ingleses.

Se o vazamento recebeu alguma atenção nos EUA, foi em grande medida graças ao jornalista e ativista Norman Solomon e à organização fundada por ele, o Institute for Public Accuracy, ou IPA (“Instituto pelo Rigor Público”, em tradução livre). Solomon havia estado em Bagdá alguns meses antes e era coautor do livro “Alvo: Iraque – o que a imprensa não contou“, publicado nos EUA no fim de janeiro de 2003.

“Eu senti uma afinidade instantânea – que eu poderia até chamar de amor – por quem havia se arriscado tanto para revelar o memorando da NSA. Só que eu não fazia a menor ideia de quem era aquela pessoa, é claro”, recorda Solomon. Pouco depois, ele assinou uma coluna, distribuída a vários veículos de imprensa, intitulada “Mídia americana se esquiva do caso de espionagem na ONU”.

Por que um jornal de peso como o New York Times não cobriu a pauta? Essa foi a pergunta de Solomon a Alison Smale, então editora da seção internacional do jornal. “Não é que não tivéssemos interesse”, respondeu Smale. “Só que não conseguimos nenhuma confirmação ou comentário [do governo sobre o e-mail da NSA]. Mas ainda estamos acompanhando. Não pense que não”, justificou.

O Times só mencionou Katharine Gun em janeiro de 2004, 10 meses depois. Mas não na seção de notícias. Devido à insistência do IPA, o colunista Bob Herbert se debruçou sobre o tema. Estarrecido com a indiferença dos editores, ele assumiu a apuração da pauta.

A esta altura, o leitor deve estar caindo no desespero. Mas continuem lendo, porque a parte mais inacreditável desta história ainda está por vir – algo tão complexo e improvável que nem sequer é mencionado no filme.

Katharine Gun, autora do vazamento de um e-mail da NSA, na saída do Tribunal de Bow Street, em Londres, no dia 27 de novembro de 2003.

Katharine Gun, autora do vazamento de um e-mail da NSA, na saída do Tribunal de Bow Street, em Londres, no dia 27 de novembro de 2003.

Foto: Bruno Vincent/Getty Images

Por que Gun decidiu vazar o e-mail da NSA? Sua principal motivação só foi revelada por ela recentemente.

“Eu já tinha sérias dúvidas sobre os argumentos a favor da guerra”, conta ela, por e-mail. Desconfiada, Gun entrou em uma livraria, se dirigiu à seção de Política e comprou dois livros sobre o Iraque. Em um fim de semana, terminada a leitura, ela se convenceu de que “não havia provas de verdade que justificassem a guerra”.

Um dos livros era Iraque: plano de guerra – dez razões contra a guerra ao Iraque, de Milan Rai. O segundo era “Alvo: Iraque”, o já citado livro de Norman Solomon e Reese Erlich.

“Alvo: Iraque” foi publicado pela Context Books, uma pequena editora que faliu logo depois. Gun descobriu o livro de Solomon meras semanas após o lançamento. Poucos dias depois, no dia 31 de janeiro, o e-mail da NSA apareceu na caixa de entrada da tradutora, que logo soube o que fazer com ele.

“Fiquei atônito ao saber que ‘Alvo: Iraque’ havia influenciado a decisão dela de vazar o memorando. Eu não sabia como lidar com aquilo”, conta Solomon.

O que tudo isso significa?

Para jornalistas que levam o jornalismo a sério, isso significa que, por mais que se tenha a sensação de estar pregando no deserto, nunca se sabe qual será o alcance e o impacto sobre outras pessoas de nosso trabalho. Nem todos que trabalham nas instituições de poder são supervilões inacessíveis. A maioria são pessoas normais, que vivem no mesmo planeta que nós e que, como todo mundo, se esforçam para fazer a coisa certa. Sem saber, todo jornalista pode estar influenciando alguém a tomar uma atitude.

Jornalistas ou não, também podemos tirar outra lição desta história: não percamos as esperanças. Solomon e Gun lamentam profundamente o fato de terem feito de tudo para impedir a Guerra do Iraque, e ela ter acontecido assim mesmo. “Fico feliz por um livro que ajudei a escrever ter repercutido dessa forma. Mas, ao mesmo tempo, parece que nada disso fez diferença”, diz Solomon.

Para mim, contudo, o que Solomon e Gun fizeram – e outros ainda podem fazer – não pode ser visto como uma derrota. As pessoas que tentaram impedir a Guerra do Vietnã só tiveram sucesso depois que milhões já haviam morrido, e muitos daqueles escritores e ativistas também pensavam ter fracassado. Mas, nos anos 1980, quando certas correntes dentro do governo Reagan quiseram invadir países latino-americanos, a organização e a experiência de décadas de ativismo frustraram seus planos. É verdade que os falcões de Reagan tinham um plano B – o apoio a esquadrões da morte que mataram dezenas de milhares de pessoas –, mas bombardeios de saturação no estilo do Vietnã teriam sido muito piores.

Do mesmo modo, é verdade que Gun, Solomon e aqueles que lutaram para impedir a Guerra do Iraque falharam em seu objetivo imediato. Mas quem estava prestando atenção na época sabia que o Iraque era apenas o primeiro passo dos planos de conquista do Oriente Médio pelos EUA. E eles podem não ter evitado a Guerra do Iraque, mas, pelo menos até o momento, ajudaram a evitar a Guerra do Irã.

E é por isso que “Segredos Oficiais” é imperdível. Poucos filmes retratam tão bem o que é estar diante de um verdadeiro dilema moral e tentar fazer a coisa certa. Mesmo em dúvida. Mesmo com medo. Mesmo sem a menor ideia do que vai acontecer em seguida.

Tradução: Bernardo Tonasse

The post ‘Segredos Oficiais': a verdade por trás da Guerra do Iraque appeared first on The Intercept.

Monday 28 October 2019

The Quotidian Uncertainty of Britain’s Monumental Shift

The Polish chef who was erroneously denied the right to indefinitely remain in Britain. The Italian partner of a British army veteran whose local member of Parliament had to intervene to secure hers. The Hungarian man who mistakenly accepted a temporary status.

At first blush, these cases demonstrate some of the complications that have emerged as a result of Britain’s ambitious plan to absorb millions of European Union nationals into its immigration system as it leaves the bloc (a move currently set for January 31). But they are also illustrative of the almost quotidian uncertainty that has plagued EU citizens living in the country since the 2016 Brexit referendum, which has thrown into doubt Britain’s future—and their place in it. The scale of this task has largely been sidelined by the litany of other bureaucratic challenges facing the British government as it prepares for its looming Brexit deadline, from bracing for potential supply-chain disruptions (including food and medicine shortages) to maintaining the status quo on the island of Ireland.

Thanks to Britain’s membership in the EU, about 3.5 million non-British Europeans live and work in the country without a visa (the EU’s combined labor market means nationals of its member states can travel and live across the bloc without restriction). Yet with Britain due to leave, their immigration status will change, and they will have to apply for a new immigration designation. Launched this year, the British government’s EU Settlement Scheme has been billed as a “free and easy” way for EU nationals to secure the bulk of their rights to live and work as they do now. At least 2 million people have already applied, and more than a million more are expected to do so by 2021.

In theory, the process is relatively simple. Any EU national who has lived in the U.K. continuously for at least five years is eligible to receive an indefinite right to stay in the country, otherwise known as “settled status.” Those who have lived in the country for less time are eligible for “pre-settled status,” which requires them to reapply once they have racked up enough time to be considered for permanent residency. Of the 1.5 million people who have secured one of those two designations as of last month, 61 percent were granted settled status; 38 percent were given pre-settled status. (Just two applications were denied on suitability grounds, which the Home Office, the government department overseeing the program, said can be due to issues of serious or persistent criminality.) “We are looking for reasons to grant status,” a Home Office spokesperson told me in an email, “not reasons to refuse.”

What looks to be simple in theory, however, hasn’t necessarily proved so in practice. For some EU nationals, the process of applying for settled status hasn’t taken the estimated 20 minutes, but weeks and, in some cases, months. Some have faced complications with the mobile application required to apply (the biometric software is available only on Android devices and, as of this month, newer iPhone models) or challenges with providing enough evidence to prove their time spent in the country (if it can’t be shown through tax records, applicants must supply other documents, such as utility bills and bank statements). In some cases, EU nationals have even been granted the wrong status altogether.

[Read: Brexit has triggered Britain’s most ambitious migration exercise ever]

When Damian Wawrzyniak applied for settled status in August, he assumed getting it would be simple. After all, the Polish national had lived in Britain for 15 years—three times the requisite period. He was continuously employed as a chef, best known for his stints cooking for the royal family and the London 2012 Olympics. He said he has paid thousands of pounds in taxes.

But when Wawrzyniak received a letter from the Home Office about his application a day after submitting it, he was informed that he would be granted temporary status to remain in the country until 2024, at which point he would be required to reapply. Wawrzyniak took to Twitter to express his dismay at the “ridiculous” verdict. The tweet was shared by tens of thousands of people and even caught the attention of some British lawmakers, prompting a response from Home Secretary Priti Patel.

“On the same day, I had … [an official] from the Home Office call me and he said, ‘Your settled status will be done straight away,’” Wawrzyniak told me, noting that he received permanent residency three days later. He attributed his success in large part to his online platform—one he has since used to organize informational meetings to help others apply for settled status. “If an ordinary person wrote a message saying what I did, nobody would even look at it,” he said. “The Home Office is not responding to anyone.”

Technically speaking, the British government is responding—though perhaps not always on Twitter: It has invested in a number of resources, including a help line and support centers. Still, it’s unclear whether these steps have proved enough to shoulder the burden of what is ultimately the largest immigration exercise the country has ever faced. According to the Home Office’s own figures, the government is processing up to 20,000 applications a day. Even if 95 percent of those applicants faced no issues with their application, that would still leave 1,000 people seeking advice from the government each day.

And that’s assuming all the applications are relatively straightforward—something that was not the case for Angie Giles. An Italian national married to a British soldier, Giles lived alternately in Britain and Germany, where her husband was stationed, for more than a decade before returning to the U.K. permanently in 2016. Her sporadic time in the country wasn’t supposed to pose an issue for her settled-status application: EU nationals who accompany family members in the military overseas can count that time toward their continuous residence in Britain.

“But once I got to the end of [the application], it said I would qualify for pre-settled status,” said Giles, who began the process in January, during the scheme’s test phase. She was then prompted to submit further documentation to verify her time in the country—including tax returns and utility bills—as far back as 2003. But her employment history was not continuous, and the utility bills were not in her name. “I thought, This is getting really ridiculous now,” she told me. “I cannot prove something that happened 15 years ago.”

Giles contested the decision by requesting an administrative review—an option that costs £80 ($104), though the fee is subject to a refund if it’s proved that the Home Office made an error. She also appealed to her local member of Parliament, Rishi Sunak, who currently serves as the government’s chief secretary to the Treasury. Soon after, Giles received a phone call from the Home Office informing her that her case had been resolved and that she had been granted settled status. In all, the process took nearly half a year.

“I knew that my MP must have ruffled some feathers,” she said, before adding that though she is happy she received her status, she doesn’t feel any more settled. “You don’t feel any safer, if you know what I mean.”

Sunak told me in a statement that though complications like these “do crop up from time to time,” the government is committed to ensuring that service personnel and their families are not discriminated against. “I have found that government departments have always been very responsive when dealing with the individual cases I have brought to their attention,” he said.

Not everyone is able to seek recourse from their MP or the Home Office. Adam Horvath, a Hungarian national who has lived in Britain for eight years, told me he ran into issues with his application in June when he was offered pre-settled status and unintentionally accepted it. “After I realized my mistake, I gave [the Home Office] a call right away,” Horvath said, at which point he was informed that his status could not be changed manually. His only option was to wait 70 days, at which time, he was told, his inactive application would be deleted automatically. Then he could start again.

To be safe, Horvath waited three months. But when he logged back on to the system, his existing application—and the pre-settled-status designation—was still there. “So I called again,” he said, and was advised that the system had changed and that he would be better off withdrawing the application and starting again. A week later, he said, he received a phone call advising him that withdrawals can take several weeks or even months, and that officials would instead attach a note to his existing application explaining the situation and asking that the caseworker reviewing it consider him for settled status. In the interim, Horvath was asked to submit further documentation to prove his years spent in the country.

“So I did that,” he said. “About four or five days after that, I was granted pre-settled status, despite putting all the evidence that proves I’ve been in this country for eight years.”

Horvath’s story isn’t uncommon. Many applicants, including Horvath, have gaps in their employment history, which makes it difficult for the government to register how long they’ve lived in the country, and some EU nationals have mistakenly accepted an incorrect status—with limited recourse to amend the error.

Some advocates for EU nationals are concerned that perhaps there are more applicants erroneously being granted pre-settled status who are eligible for a permanent status instead. Those worries are compounded by the fact that no one really knows how many EU nationals are in the country (the 3.5 million figure is only an estimate). As a result, “it’s very unclear what success will look like,” Maike Bohn, a co-founder of the3million, an advocacy group for EU citizens in the U.K., told reporters in London this month. “The big worry and the elephant in the room is that hundreds of thousands of people will not apply and be successful by the deadline.”

The deadline by which EU nationals have to apply for their new status largely depends on the outcome of Brexit itself. Should Britain leave the bloc with a withdrawal agreement, EU nationals will have until June 2021 to apply; if the country exits without a deal, that deadline moves up to the end of December 2020. EU nationals have been warned that those who fail to secure a status by then could be subject to removal from the country—an outcome that Luke Piper, an immigration lawyer and legal adviser for the3million, said could pose a “monumental risk” for the most vulnerable among them, including the elderly, those with limited English, and children. (Home Office Minister Brandon Lewis has said that the government will “allow time for those with reasonable grounds for missing the deadline.”)

[Read: Brexit got a lot more complicated for EU citizens]

When I asked Horvath whether he has contacted the Home Office since, he said he has not. Between a full-time master’s program in mechanical engineering and a part-time job, he hasn’t had the time. But he isn’t discouraged either. “When you have a big project where you try to register 3 million people, it is inevitable that people will fall through the cracks,” he said, “so I think I’m one of those people.”

Sunday 27 October 2019

Documento revela pressão da Embratur sobre a Funai para transformar terra indígena em hotel de luxo na Bahia

Documento revela pressão da Embratur sobre a Funai para transformar terra indígena em hotel de luxo na Bahia

A Funai recebeu um pedido inusitado em julho. A Embratur quer que o órgão, responsável pela proteção dos direitos indígenas no país, acabe com o processo de demarcação de uma reserva para permitir a construção de um hotel de luxo no local. A solicitação chegou à Funai assinada pelo presidente da Embratur, Gilson Machado Neto, e o Intercept teve acesso ao documento com exclusividade.

A área fica no sul da Bahia, tem 470 quilômetros quadrados e pertence ao povo Tupinambá de Olivença, que luta há pelo menos 15 anos pela demarcação da terra. A primeira fase do processo foi concluída em 2009.

Trata-se, segundo servidores da Funai e especialistas com quem conversei, de um caso inédito. É a primeira vez, ao menos desde a Constituição de 1988, que um órgão federal faz lobby sobre outro – e o registra num documento oficial do governo – para entregar à iniciativa privada uma área indígena registrado em um documento oficial do governo.

Se vingar, o pedido da Embratur vai beneficiar a rede hoteleira portuguesa Vila Galé, que tem planos para construir um hotel de luxo com 467 apartamentos no local. É uma das empresas que devem ser beneficiadas pelo projeto Revive, do governo federal, uma iniciativa para conceder a gestão de mais de 200 pontos turísticos brasileiros para a iniciativa privada – como revelou o Intercept. A empresa confia tanto no lobby de Machado Neto que já anuncia que o empreendimento deverá estar de portas abertas em 2021.

Médico veterinário, amigo pessoal de Jair Bolsonaro, o presidente da Embratur é mais conhecido por ser sanfoneiro, dono de pousada e ter sido multado por desrespeitar a legislação ambiental. É um histórico que o credenciou, aos olhos do presidente de extrema-direita, a comandar o Instituto Brasileiro de Turismo, a Embratur, uma autarquia ligada ao Ministério do Turismo cuja atribuição é promover o país no mercado internacional.

O documento, em papel timbrado do órgão, tramita sob sigilo – possivelmente porque Machado Neto sabe que o pedido afronta o que a Constituição determina a respeito do assunto.

Servidores da Funai ouvidos sob condição de anonimato afirmam que são comuns as pressões de fazendeiros ou empresários insatisfeitos com a demarcação de áreas indígenas. Mas a desfaçatez de um pedido oficial do tipo, feito por outro órgão da administração federal, causou perplexidade. As fontes relatam um ambiente de caça às bruxas e naturalmente temem retaliações.

A área dos Tupinambá de Olivença no sul da Bahia é maior em tamanho que a do município de Curitiba e é o lar de 4,6 mil indígenas, além de marisqueiros e pescadores artesanais. Há registros de que eles vivem no local há mais de 300 anos. A região é há muito tempo alvo de cobiça e palco de conflitos devido a seu alto potencial turístico e econômico: está a poucos quilômetros das paradisíacas praias de areia branca de Ilhéus e é rodeada por plantações de cacau destinado à exportação.

O documento tramita sob sigilo – possivelmente porque Machado Neto sabe que o pedido à Funai afronta a Constituição .

A Embratur argumenta, no ofício enviado à Funai, que a Vila Galé tem a intenção de “viabilizar a construção de 2 (dois) empreendimentos hoteleiros, tipo Resort, com 1040 leitos”, que será “voltado para turistas estrangeiros”.

“Embratur vem à presença de Vossa Senhoria manifestar seu interesse no encerramento do processo de demarcação de terras indígenas Tupinambá de Olivença, localizadas especialmente nos municípios de Una e Ilhéus, Estado da Bahia”, diz o pedido dirigido a Marcelo Augusto Xavier da Silva, presidente da Funai. Mais adiante, Machado Neto é mais incisivo: “rogamos o fundamental e imprescindível apoio para a viabilização deste importante polo turístico”.

O lobby não se restringiu aos trâmites oficiais. Em um vídeo postado na página de Facebook do vice-governador da Bahia, João Leão, do PP, Machado Neto chama o projeto de “magnífico” e diz que ele “conta com o apoio do governo federal”.

Perguntei a Eduardo Viveiros de Castro, um dos antropólogos mais respeitados do Brasil na questão indígena, se ele já tinha se deparado com alguma situação parecida na história brasileira. “Nunca ouvi falar de iniciativa oficial para cancelar demarcação de terra indígena”, ele me respondeu.

Os demais indigenistas e antropólogos com quem conversei disseram o mesmo. Antropóloga e professora da Universidade de Brasília, Mônica Nogueira explicou que essa atuação da Embratur é ilegal, porque vai contra o artigo 231 da Constituição Federal, que afirma que os índios têm direito sobre as terras tradicionalmente ocupadas por eles e que cabe ao governo federal demarcar e proteger os locais.

“Quando o governo questiona um processo de demarcação, o que chama a atenção é que isso fere a Constituição, porque é responsabilidade dele cumprir o direito originário. Mas não causa estranheza, porque estamos em um momento bastante adverso para os povos indígenas. Há grande cobiça sobre as terras por setores econômicos que estão atravessados no poder público”, disse Nogueira, coordenadora do mestrado em sustentabilidade junto a povos e territórios tradicionais da UnB.

Questionada, a Embratur respondeu por e-mail que “não tem competência para interromper demarcação de terras indígenas”. “O ofício, em questão, solicita apenas a revisão do processo de maneira a garantir a segurança jurídica e estimular o desenvolvimento do turismo na região citada”, diz o texto.

Procurei a Funai na última quarta-feira. Na sexta, o órgão informou que não tinha “tempo necessário para apuração da informação” antes da publicação desta reportagem. O espaço está aberto para comentários. Já a Vila Galé não quis se pronunciar sobre o assunto.

All inclusive

Pouco interessado no que diz a lei brasileira sobre o direito dos Tupinambá às terras que cobiça, o grupo Vila Galé já anuncia aos interessados o seu novo empreendimento na costa baiana: quem visita o site do grupo recebe a informação de que em 2021 será inaugurado o Vila Galé Costa do Cacau. Segundo o texto, o empreendimento será um resort all inclusive, com 467 apartamentos, a ser erguido a um custo de R$ 150 milhões.

A confiança tem sentido. Afinal, a responsável por dar o parecer sobre o caso na Funai é a diretora Silmara Veiga de Souza, que já contestou a demarcação de terras indígenas. Ela também participou de audiência pública, ao lado de ruralistas, na qual o presidente da Funai prometeu aos produtores que vai reavaliar terras demarcadas. O pedido da Embratur atualmente se encontra na Coordenação de Delimitação e Análise da Funai, que é subordinado à diretora, aguardando parecer.

O fim da demarcação seria um atalho para encurtar o caminho dos portugueses.

Dando de ombros às filigranas de licenciamento, a empresa já foi ao local fazer a marcação de onde deseja construir seu resort. Em retaliação, indígenas liderados pelo Cacique Valdenilson Oliveira ocuparam a terra e impediram a continuidade dos trabalhos. Antes de apelar ao lobby do presidente da Embratur, apurei que o grupo hoteleiro já havia acionado o Ibama e a Funai em busca de permissão para operar empresa turística dentro do território indígena, mas o processo ainda está em fase inicial de tramitação. De todo modo, a permissão para montar um negócio em terra indígena costuma demorar anos. Ou seja – o fim da demarcação seria um atalho para encurtar o caminho dos portugueses.

O Vila Galé conta com o apoio de políticos da região que, assim como o vice-governador do estado, não têm maiores pudores em dar de ombros ao direito constitucional dos indígenas de permanecer na terra em que estão. Tiago Birschner, do PP, prefeito de Una, cidade que fica a pouco mais de 60 quilômetros de Ilhéus e também compreendida na terra indígena, divulgou uma carta aberta para Bolsonaro pedindo ajuda para não perder a “oportunidade” da instalação do resort. Ele diz que o secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Luiz Antônio Nabhan Garcia, “tem ciência do assunto” e de como “a região está prejudicada pela pretensão da Funai em tomar as terras indígenas”.

Há poucas semanas, o prefeito fez um vídeo no qual contou que participou de reunião na Funai sobre a Vila Galé para “encontrar uma solução que nada tem a ver com interferir com os direitos dos povos indígenas”. Birschner, que usa na urna o nome Tiago de Dejair, também fez posts no Facebook sobre as audiências que participou em Brasília para tratar da questão: cita que já se encontrou com o secretário especial de articulação da presidência da República, Iury Revoredo, com representantes do Ministério da Agricultura e da Embratur. Ao seu lado, segundo ele, estava o deputado federal Mário Negromonte Júnior, do PP baiano.

Tanto Birschner quanto o vice-governador João Leão já postaram várias fotos nas redes sociais junto com o presidente do conselho de administração do grupo Vila Galé, Jorge Rebelo. Numa delas, os dois aparecerem recebendo um Rebelo vestido casualmente, de bermuda e tênis, no aeroporto de Ilhéus para uma rodada de conversas sobre o empreendimento.

Birschner me explicou, por telefone, que o município não quer o fim do processo de demarcação, mas sim a retirada de uma área de 800 hectares para a construção do resort. O que daria na mesma: para isso, a Funai teria que rever o procedimento que já delimitou área caracterizada como terra indígena. O ofício da Embratur, segundo ele, não está de acordo com o pleito do município: “Isso deve ter partido deles”.

O prefeito também disse que o Vila Galé já recebeu autorização dos órgãos ambientais estadual e municipal, o que garantiria que o empreendimento não irá comprometer o meio ambiente da região. Agora, falta o aval da Funai. “Nosso pleito não é contra o indígena, é pela geração de emprego e renda”, esquivou-se.

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A área dos Tupinambá de Olivença já passou por estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais que fundamentam sua demarcação. Mas o processo está parado desde 2016.

Mapa: João Brizzi/The Intercept Brasil

A canetada do ‘papai Moro’

A área dos Tupinambá de Olivença hoje está em fase intermediária do processo de demarcação e é classificada como “terra delimitada”. Isso significa que já passou por estudos antropológicos, históricos, fundiários, cartográficos e ambientais que fundamentam a demarcação da terra indígena. Mas o processo está parado desde 2016. No momento, aguarda uma canetada do ministro da Justiça, Sergio Moro, o “papai” da Funai, para que tenha continuidade.

Moro já deu de ombros para a Funai, dizendo não ter interesse em cuidar de questões indígenas, à época em que Damares Alves cobiçava o controle do órgão. “A Funai tem que ficar com a mamãe Damares, não com o papai Moro”, ela defendeu. Mas ela acabou mesmo no colo de Moro, ainda que nos bastidores servidores digam que Damares exerce forte influência no setor. No breve período em que comandou de fato a Funai, a ministra demitiu seu presidente por pressão de ruralistas.

A Embratur está se empenhando para trazer turistas estrangeiros ao país, já que o número de visitantes está estagnado nos últimos três anos, e a imagem brasileira foi comprometida pela crise internacional dos incêndios na Amazônia, agravada pelas ofensas que Bolsonaro dirigiu ao presidente da França, Emmanuel Macron, e pelo discurso dele na ONU. Hoje, o país recebe menos turistas por ano que o Museu do Louvre, em Paris. O plano da autarquia é dobrar o número de visitantes até 2022, mas a inaptidão dos responsáveis no governo joga contra. A estratégia de marketing adotada em 2019, cujo slogan é “Brazil – Visit and love us”, foi amplamente criticada por remeter a turismo sexual.

Governo Bolsonaro exonerou chefe de fiscais ambientais que multaram presidente da Embratur.

Apesar de elencar o ecoturismo como uma das prioridades para atrair estrangeiros ao Brasil, Machado Neto já foi multado, em 2016, por desrespeitar regras de turismo sustentável dentro de área de proteção ambiental na costa de Alagoas, onde é dono de uma pousada com apenas seis quartos e mais de um quilômetro de praia privativa. Ali, um casal não gasta menos de R$ 1.160 nas diárias para um fim de semana, de acordo com o site de reservas Booking. Localizado em São Miguel dos Milagres, o estabelecimento foi multado por não retirar tendas e bangalôs da praia durante a noite, o que prejudica a desova de tartarugas e impacta outros animais do ecossistema da região.

Possivelmente não por coincidência, o chefe da unidade que multou Machado Neto foi exonerado poucos dias após ele ser empossado como secretário do Ecoturismo do Ministério do Meio Ambiente, no início de 2019. Mais tarde, em agosto, dois fiscais que o multaram também seriam transferidos das unidades em que atuavam, mas o governo voltou atrás depois que o Ministério Público Federal anunciou que iria investigar o caso.

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Imagem: Reprodução/Instagram

Machado Neto foi secretário-geral do diretório pernambucano do PSL, partido de Bolsonaro, e um dos mais ativos membros da campanha eleitoral do presidente. Após as eleições, ganhou a presidência da Embratur. É também presença frequente nas lives semanais do capitão e é o mais cotado para ser o novo o novo ministro do Turismo, já que o atual, Marcelo Álvaro Antônio, está queimado para caramba por causa da investigação da Polícia Federal sobre o uso de laranjas para fomentar campanhas do PSL.

Machado Neto trabalha para resolver os problemas do grupo Vila Galé mirando voos mais altos na política. Apesar de ser veterinário, produtor de gado e coco – e sanfoneiro da banda de forró Brucelose, nome de uma doença que afeta bovinos –, ele já demonstrou que almeja disputar eleições e vê no turismo um trampolim para suas intenções. Já declarou, inclusive, que quer concorrer à prefeitura de Recife no ano que vem, apoiado por Bolsonaro.

Justamente por isso, ele protagoniza um embate com o presidente nacional do PSL, o também pernambucano Luciano Bivar, desde que Bolsonaro entrou em pé de guerra com o partido que o elegeu.

Um empreendimento que gera empregos como o resort da Vila Galé serviria como um trunfo. O grupo português já possui um hotel de luxo localizado a 60 minutos do centro de Recife, o Eco Resort do Cabo, que foi erguido por outra empresa e mudou de bandeira duas vezes antes de passar para às mãos da cadeia portuguesa.

Marcelo Augusto Xavier da Silva, presidente da Funai, também já demonstrou pouco apreço pelo meio ambiente e pelos indígenas, a quem deveria proteger. Apoiado pela bancada ruralista no Congresso, ele defende abertamente a exploração de garimpo em terras indígenas e foi nomeado assessor de Nabhan Garcia, presidente da União Democrática Ruralista, a UDR, e é hoje responsável pela “reforma agrária” no governo Bolsonaro – que está parada.

Jair Bolsonaro, o presidente de extrema direita, já disse algumas vezes que “não tem mais reserva indígena no Brasil” enquanto estiver no poder. E falou em rever as já demarcadas.

Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

Limpeza ideológica

Não parece provável que o ofício da Embratur – ou outros semelhantes que venham a chegar – venha a ser avaliado de forma criteriosa pela Funai. Desde a chegada de Bolsonaro, servidores do órgão alegam que são alvo de perseguição, sob a justificativa de que seriam “ideológicos”. Em menos de dois meses, 11 dos 15 coordenadores-gerais da instituição foram exonerados e substituídos por pessoas de confiança do presidente.

A situação fica explícita ao se analisar o destino de uma nota técnica assinada pelo coordenador-geral de gestão de pessoas da Funai, Haroldo Niemeyer Resende. O documento apontou ingerência em nomeações de cargos-chave da instituição, desprezo por servidores especializados e com experiência e exonerações e indicações sem critérios técnicos, que causam um clima de insegurança e ansiedade nos servidores, que se sentem impedidos de fazer seus trabalhos. Resultado: Resende foi exonerado uma semana depois.

No lugar de servidores de carreira capacitados para tocar a Funai, o governo Bolsonaro nomeia gente como o novo diretor de administração e gestão, Fernando Carlos Wanderley Rocha, que atuava como analista legislativo na Câmara dos Deputados. Ele é um crítico contumaz das demarcações de terras indígenas e autor de um estudo com ares de teoria conspiratória que louva as forças armadas, argumenta que a Amazônia tem que ser ocupada para não ser invadida e diz que ONGs brasileiras e internacionais impedem o progresso da região.

Nele, Rocha manifesta profunda desconfiança quanto ao órgão em que trabalha, alegando que a Funai é “ocupada por ONGs” e “antropólogos identificados com a causa” e toma decisões que não podem ser revistas nem pelo presidente da República – o que é questionável –, “o que implica graves consequências para os cidadãos e para o Estado brasileiros”. Argumenta, ainda, que as reservas indígenas criadas em regiões de fronteira são uma ameaça à soberania nacional. “Nesses bolsões, o brasileiro comum não entra, mas a miríade de ONGs age com plena desenvoltura, ainda que possam estar atentando contra os interesses do Estado e do povo brasileiros”.

Wanderley Rocha e Xavier da Silva trabalharam na CPI da Funai, uma comissão dominada por ruralistas que investigou supostas ilegalidades na demarcação de terras indígenas e quilombolas e que, em 2017, recomendou o indiciamento de 67 pessoas, entre servidores da Funai, antropólogos e lideranças comunitárias, além de “reestruturação” da fundação. A proposta inicial era simplesmente extinguir o órgão, mas ela foi abrandada após críticas de entidades indigenistas.

16 de outubro: em Brasília, lideranças Pataxó e Tupinambá de 26 aldeias da Bahia se reuniram para cobrar a regularização de seus territórios.

Lideranças Pataxó e Tupinambá de 26 aldeias da Bahia se reuniram em Brasília em 16 de outubro para cobrar a regularização de seus territórios.

Foto: Renato Costa/FramePhoto/Folhapress

‘Vocês ficam se pintando pra dizer que são índios’

Apesar de ser o primeiro povo indígena a ter contato documentado com os portugueses que chegaram ao Brasil – eles ficaram famosos com o relato de Hans Staden, de meados do século 16, que tratava de forma sensacionalista os rituais de antropofagia –, o processo de demarcação dos Tupinambá na Bahia só teve início em 2001 e se arrasta desde então. Sem a demarcação, os próprios indígenas tomaram para si o papel de retomar territórios ocupados irregularmente por fazendeiros – em movimentos que chamam de “retomada” das terras.

Por causa das retomadas, o cacique Babau, uma das principais lideranças indígenas do país, foi preso ao menos quatro vezes durante os governos Lula e Dilma. Este ano, ele denunciou um plano de fazendeiros e policiais para assassinar seus familiares. De acordo com o povo, pelo menos 30 tupinambás foram mortos nos últimos anos por conflitos ligados às terras.

A construção do resort se soma ao panorama sombrio. Conversei por telefone com o cacique Valdenilson, um dos líderes dos povoados. Ele contou ter sido o responsável pela ocupação do terreno no qual diz que funcionários do Vila Galé já começaram a trabalhar. Depois disso, disse que vem sendo hostilizado por representantes do Ibama e da guarda municipal de Una. “Eles falam ‘aqui é área do hotel, você vai ter que sair daqui’, ‘vocês não pertencem a esse lugar, ‘vocês não são índios, vocês ficam se pintando pra dizer que são índios”, relatou.

O cacique também afirmou que interessados na construção do resort começaram uma campanha difamatória, alegando que os indígenas “não querem o desenvolvimento da região”. “Já ofereceram 50 vagas de emprego para os indígenas, tem gente até de fora que veio comprar terreno pra dizer que é morador e ter emprego. Eles jogam a comunidade contra a gente. Por causa disso até tráfico de droga começou a ter”, disse. Tiago Birschner, o prefeito de Una, disse desconhecer as acusações.

Para os Tupinambá de Olivença, a terra não é só fonte de subsistência para os seus mais de 4 mil moradores. É também um local sagrado, onde residem os “encantados”, seres não humanos centrais na cosmologia do povo. Segundo o cacique Valdenilson, a construção do resort vai impactar toda a região, que é cercada por rios, serras e mangues que servem como meio de subsistência.

Para ele, a natureza será comprometida pela poluição e pelo movimento nas estradas que terão que ser abertas em meio à mata. O cacique é ainda mais incisivo: ele acredita que todos os 4 mil indígenas, pescadores e marisqueiros artesanais que moram na região terão que se mudar por causa dos impactos. “E ir pra onde?”, perguntou.

Em uma carta pública divulgada em fevereiro em nome dos tupinambá de Olivença, o cacique Babau e o pajé Rosemiro queriam alertar às autoridades que o projeto de governo de Bolsonaro para os indígenas seria um “decreto de morte” a várias etnias.

“Garantimos às autoridades brasileiras e internacionais que, se essas medidas forem consolidadas, nós, Tupinambá, seremos todos assassinados, porque não vamos ceder, não vamos recuar. Queremos a garantia dessas autoridades: todos nós, após sermos mortos, temos que ser enterrados no pé da serra”, diz o texto. “Não abrimos mão de ser enterrados no lugar onde formos assassinados, dentro do nosso próprio território, uma vez que nós nunca aceitaremos sair.”

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