Saturday, 12 October 2019

Bolsonaro acertou: aviso obrigatório de violência contra a mulher à polícia seria desastroso

Bolsonaro acertou: aviso obrigatório de violência contra a mulher à polícia seria desastroso

Pânico. Essa foi a sensação que me invadiu ao imaginar que, depois de revelar a um médico ter sofrido violência doméstica e sexual, eu poderia ser surpreendida com uma intimação para depor na delegacia. Nesta quinta-feira, Jair Bolsonaro vetou o projeto que tornaria isso possível – o PL 2538/2019, que obriga profissionais de saúde a notificar à polícia a suspeita de abuso de mulheres. E, pela primeira vez, concordei com um parecer do presidente.

A decisão gerou uma enxurrada de críticas. Políticos da oposição citaram com revolta estatísticas de crimes como estupro e feminicídio, sugerindo que o veto era resultado da pouca relevância dada por Bolsonaro à violência contra a mulher. Não tenho dúvidas de que o presidente não se importa com os abusos que sofremos – afinal, estamos falando de uma das figuras mais misóginas da República. Isso não muda, no entanto, o fato de que o veto foi acertado.

Ao ler os pronunciamentos da oposição sobre o tema, só conseguia visualizar uma cena. Eu e milhares de outras mulheres sendo forçadas, após um inocente atendimento médico, a encarar nossos agressores num tribunal e, por isso, precisar conviver com eles por anos. E a repetir a completos desconhecidos os detalhes mais dolorosos de nossas histórias e vê-las abertas à discussão – tudo por um processo penal que nunca quisemos.





Parece que o direito de nós, mulheres sobreviventes de violência, decidirmos nossos próprios destinos sequer ocorreu à parte da oposição, que pretende derrubar o veto no Congresso. Acreditem se quiserem: o fato de termos sofrido abusos não nos torna crianças incapazes de tomar decisões por si sós, nem pessoas com necessidade de tutela do estado.

Não é exagero. O PL 2538/2019, de autoria da deputada Renata Abreu, do Podemos, não apenas obriga profissionais de saúde a quebrar o sigilo médico-paciente para denunciar casos de abuso à polícia, como dá às forças de segurança poder para agir a partir daí – ainda que a vítima não queira.

Citando vários artigos acadêmicos sobre violência contra a mulher, a Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras foi uma das organizações que se posicionou contra o projeto. A notificação compulsória, para a organização, “pode diminuir as chances de as mulheres revelarem a situação de violência ao profissional de saúde, reduzindo a busca por assistência e majorando riscos”. “A quebra do sigilo profissional nas situações de violência contra a mulher, portanto, pode levar a uma erosão irreversível da relação de confiança com o profissional de saúde, culminando no afastamento da mulher dos espaços de acolhimento, tratamento e orientação”, diz a nota divulgada pela rede.

Vale lembrar que, em casos de violência doméstica, a ação penal é incondicionada. Isso significa que qualquer pessoa pode fazer a denúncia – um vizinho, um amigo, um parente, uma testemunha desconhecida – e, então, o Ministério Público abre uma investigação que pode resultar num processo penal, querendo a vítima ou não.

Fazer uma denúncia sem autorização ou sequer conhecimento da vítima não a protege. É, na verdade, a forma mais fácil de colocá-la em perigo iminente.

Escondendo mais um ataque à nossa autonomia, diversas notícias sobre o tema se restringiram a expor como justificativa para o veto a afirmação de Bolsonaro de que o projeto “contraria o interesse público” – quando não defenderam abertamente a retirada de nosso poder de decisão. Esqueceram de completar que determinar a identificação da vítima sem sua autorização a coloca em risco – e é isso que contraria o interesse público. “O sigilo é fundamental para garantir o atendimento à sua saúde sem preocupações com futuras retaliações do agressor”, afirma a mensagem presidencial.

Veja, a saída de um relacionamento abusivo é o momento de maior risco à vida de uma mulher em situação de violência. Tanto o rompimento quanto uma possível denúncia criminal precisam ser planejados com cuidado e, preferencialmente, com a ajuda de profissionais de órgãos como o Núcleo Especial de Defesa dos Direitos da Mulher e os Centros Especializados de Atendimento à Mulher.

Vou ser clara: uma vítima que não teve tempo para refletir sobre a denúncia – e, portanto, sobre as medidas que precisa tomar para se proteger quando a investigação chegar aos ouvidos de seu agressor – é uma mulher em risco de vida. Fazer uma denúncia sem autorização ou sequer conhecimento da vítima não a protege. É, na verdade, a forma mais fácil de colocá-la em perigo iminente.

Mesmo quando a possibilidade de retaliação não é uma preocupação, há outros fatores a serem considerados. Processos ligados à violência contra a mulher são penosos e podem se arrastar por anos. Nesse percurso, é comum que a vítima tenha de repetir sua história diversas vezes, revivendo o momento traumático, e que a defesa do réu recorra a táticas machistas para manchar a reputação da mulher. Preparar-se para realizar uma denúncia não envolve apenas cuidados com a segurança física da vítima, mas também com sua saúde mental. Jogar uma mulher em um processo penal sem que ela esteja pronta para enfrentá-lo – ou sem que deseje fazer isso – é cometer contra ela uma nova violência.

Efeito rebote

Se eu soubesse que conversar com meus médicos sobre a situação de violência que sofri poderia me colocar, contra minha vontade, em um processo penal, eu teria duas opções: deixar de ir a consultas médicas ou esconder dos profissionais de saúde a minha história – um dado valioso para que eles possam fazer diagnósticos corretos e oferecer tratamentos eficazes. E posso imaginar milhares de sobreviventes fazendo a mesma coisa. Afinal, mesmo sem esse perigo, as mulheres raramente dividem seus relatos de abuso com médicos.

Quando tocam no assunto, os profissionais não as levam a sério. Uma pesquisa realizada em 19 serviços de atenção básica de São Paulo revelou que quase metade das pacientes havia sofrido violência doméstica. Mas o registro da violência aparecia em menos de 4% dos prontuários. Isso porque os profissionais de saúde não veem a violência como um problema de saúde, mas sim como questão de polícia – sem mencionar os números chocantes de violência sexual cometida nos próprios atendimentos. O PL defendido pela oposição só tende a piorar essa visão.

O projeto tampouco é necessário para aumentar a produção de estatísticas de violência contra a mulher. O registro desses casos em um sistema do Ministério da Saúde já é obrigatório e não expõe a identidade da vítima. É algo completamente diferente de fazer uma denúncia à polícia sem sequer consultar a pessoa que terá sua vida mais afetada por isso: a mulher que, mais uma vez, se encontrará em um ciclo de sofrimento aparentemente sem saída. Foi essa sensação de estar encurralada, sem poder sobre minha própria vida – a mesma que tinha dos 16 aos 18 anos, em meu relacionamento abusivo – que me despertou pânico ao acompanhar o noticiário desta quinta.



É simples: o envolvimento da polícia só deve acontecer por decisão da mulher, pois é ela quem irá arcar com suas consequências. O que os profissionais de saúde precisam não é de carta branca para brincar de delatores. Eles, pelo bem das mulheres que atendem, precisam ser capacitados para identificar os sinais de abuso, informar suas pacientes sobre seus direitos e encaminhá-las aos serviços da rede especializada de enfrentamento à violência, preparados para realizar acompanhamento psicológico e social.

O que os profissionais de saúde precisam não é de carta branca para brincar de delatores.

Com essa ajuda, as sobreviventes poderão decidir por si mesmas se a denúncia criminal é ou não o melhor caminho. Essa é uma questão altamente subjetiva. Para muitas mulheres, o registro de ocorrência é uma forma de dizerem “basta”, de se sentirem mais seguras ou de quebrarem o silêncio e confrontarem seus agressores. A elas, dou meu apoio incondicional. Mas, para mim, não há nada de positivo num processo em que “ganhar” significa reviver meus traumas para jogar meu agressor nas masmorras de uma prisão, sem oferecer qualquer acompanhamento psicológico para ajudá-lo a refletir sobre o mal que me fez e formas de evitar novos abusos. Para mulheres como eu, espero o mesmo apoio dado às que veem a denúncia como algo empoderador.

Não há certo ou errado quando o ponto em questão é a denúncia. Todas as mulheres merecem viver livres de violência e receber o apoio e acolhimento necessário para se desvencilhar de relações abusivas. Melhor ainda: todas as meninas e todos os meninos merecem receber a educação necessária para entender, desde cedo, o que é violência e o que é amor e o que é sexo e o que é estupro. É a prevenção, não o foco na punição, que irá baixar os índices de violência contra mulheres.

Talvez a gana punitivista que atinge tanto a esquerda quanto a direita (e que Bolsonaro tanto propaga, vale lembrar) tenha tornado os apoiadores deste PL cegos ao fato de que, para algumas de nós, a denúncia criminal simplesmente não é algo desejado. Pelo contrário: é o vislumbre de uma nova violência, que temos o poder de evitar – isto é, se a oposição permitir a cada uma de nós decidir denunciar ou não aqueles que nos abusaram. Cara oposição: ainda temos direito à autonomia ou vocês preferem rifá-la para contrariar Bolsonaro?

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