Uma série de medidas tomadas pelo governo Jair Bolsonaro está retirando de Ibamae ICMBioa autonomia para ações de preservação ambiental e combate ao desmatamento na Amazônia. Uma fonte que pediu para não ser identificada por temer represálias disse ao Intercept que há um plano em andamento para esvaziar as funções dos dois órgãos federais especializados em crimes contra o meio ambiente.
No despacho 110/2020, a que tive acesso com exclusividade, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, determinou a dez órgãos subordinados a ele – Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Funai entre eles – que enviassem, até o último dia 12, relatórios “das atividades em curso, ações realizadas no último ano e sugestões de ações para o desenvolvimento da Amazônia Legal, nos eixos: Proteção, Preservação e Desenvolvimento Sustentável”.
Trata-se de uma resposta a um pedido em que o vice-presidente Hamilton Mourão “solicita que seja encaminhado relatório das atividades em curso e sugestões de ação para o desenvolvimento da Amazônia Legal” e pede a Moro uma apresentação sobre “proteção e preservação de desenvolvimento sustentável” – tarefa que, em tese, caberia ao Ministério do Meio Ambiente.
Moro deverá se reunir com o vice presidente na quinta-feira, 20, para tratar do assunto. Mourão foi nomeado presidente do Conselho Nacional da Amazônia Legal, que irá “coordenar e acompanhar a implementação das políticas públicas relacionadas à Amazônia”.
O conselho foi criado em 1995 e reativado, no último dia 11, com uma mudança crucial: o comando saiu das mãos do Ministério do Meio Ambiente para as de Mourão. Salles será apenas mais um entre os 14 ministros com assento no grupo. Já Ibama e ICMBio estão fora da lista. “Existem várias políticas públicas, nos mais diferentes ministérios, que atuam praticamente independentes”, já disse o vice-presidente. “A criação do conselho é para que a gente consiga ter um comando, um controle dessas atividades”.
Atualmente, a legislação assegura que os servidores ambientais são as autoridades competentes para aplicar multas e abrir processos administrativos contra os transgressores. Mas Bolsonaro, Mourão e Moro trabalham para que isso vire atribuição policial.
O novo Conselho da Amazônia deverá ter como subordinada a Força Nacional Ambiental. Ainda sem previsão para começar a funcionar, a nova força policial anunciada no mês passado por Bolsonaro deverá, na prática, retirar atribuições de fiscais do Ibama como os que prenderam o antropólogo e ativista de direita Edward Luz no Pará.
Governo vai usar policiais para driblar o que considera ‘ideologia’ no trabalho de Ibama e ICMBio.
Mourão já adiantou que ela poderá ser formada com base em um decreto editado em 2008, no governo Lula. O texto, nunca colocado em prática, mas ainda em vigor, criava a Guarda Nacional Ambiental.
Questionado sobre planos para a criação da força ambiental, o Ministério da Justiça e Segurança Pública afirmou que o assunto cabe apenas à vice-presidência da República, responsável pelo Conselho da Amazônia. A vice-presidência foi procurada, mas se recusou a prestar esclarecimentos. Também inquiri o Ministério do Meio Ambiente quanto ao pedido feito por Mourão a Sergio Moro a respeito de atribuições que, em tese, caberiam a Ricardo Salles. Não houve resposta.
O governo Bolsonaro trava uma queda de braço com Ibama e ICMBio, órgãos recheados de servidores de carreira que tentam fazer o trabalho: combater o desmatamento ilegal de acordo com a lei em vigor. Na visão do bolsonarismo, ao cumprirem o dever que seus cargos exigem, eles agem motivados por um esquerdismo incorrigível. Ao passar parte das funções para policiais, o governo indica que pretende driblar o problema “ideológico”.
“O governo tem mecanismos para fazer a desconstrução [do poder de fiscalização de Ibama e ICMBio] sem alterar a lei. Há coisas que pode não se tirar da legislação, mas se tira na prática. Tem muitos caminhos para isso”, avalia Elizabeth Uema, secretária executiva da Ascema Nacional, entidade que representa os servidores federais ambientais de carreira.
A entrega do conselho a Mourão já é um sinal de redução da autonomia que os servidores têm para definir os locais a serem fiscalizados. O combate ao desmatamento, por exemplo, é feito pelo Ibama a partir de dados como os fornecidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe. Mas fiscais ouvidos pelo Intercept e que pediram para não ser identificados temem perder a autonomia para atuar tendo que se submeter a um conselho comandado por um militar da reserva.
Asfixia de fiscais
A nova versão do Conselho da Amazônia também excluiu da mesa os governadores da região, o que provocou uma série de críticas. Governos estaduais são diretamente interessados no problema porque, entre outros motivos, a Força Nacional Ambiental deverá contar com policiais militares estaduais deslocados de suas funções originais, como já afirmou Salles.
Antes de ser eleito presidente, Bolsonaro fez o que estava a seu alcance para tentar asfixiar o poder de polícia de servidores ambientais. Em 2013, um ano após ser multado pelo Ibama por pesca irregular em Angra dos Reis (RJ), o então deputado federal apresentou à Câmara um projeto de lei para revogar a permissão de porte de arma para servidores ambientais. Dois anos depois, ele mesmo retirou o projeto de pauta, justificando que “o aumento da criminalidade e da sensação de impunidade” exigiam que determinadas categorias profissionais tivessem acesso ao porte.
Outra proposta apresentada do então deputado Bolsonaro foi incluía as polícias militares no Sistema Nacional do Meio Ambiente, o Sisnama, que congrega todos os órgãos federais, estaduais e municipais que podem atuar na área.
Levado ao Congresso em 2014, o projeto de lei caducou ao final da última legislatura, em 2018, mas foi reapresentado no ano passado pelo bolsonarista Coronel Tadeu, deputado pelo PSL de São Paulo. A ideia é legalizar algo que já ocorre na prática. Mas servidores ambientais com quem conversei avaliam que a falta de limites claros para a atuação das polícias pode ameaçar a autonomia dos fiscais de Ibama e ICMBio.
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