‘Pai, não perdoa. Eles sabem o que fazem’. Gleice Barbosa Andrade admite que às vezes falta piedade no pensamento e na reza. Vive inconformada, tentando ajudar o filho a se livrar dos traumas gerados pela violência física e psicológica que ele sofreu em um centro de reabilitação antidrogas.
Há quase um ano, Gleice internou Bernardo* na Comunidade Terapêutica Centradeq-Credeq, em Lagoa Santa, no interior de Minas Gerais, porque estava desesperada, sem saber o que fazer com o filho de 15 anos que se ‘afundava na maconha’. Depois de oito meses pagando R$ 1,8 mil de mensalidade, encontrou o menino muito pior do que quando o entregou ao pastor dono da clínica. Hoje, Bernardo só consegue dormir com remédios e vive constantemente assustado.
O modelo de comunidades terapêuticas, instituições privadas de tratamento a dependentes químicos, é o preferido do governo. Nos últimos cinco anos, essas clínicas – normalmente ligadas à igrejas – receberam pelo menos R$ 250 milhões só da esfera federal. E devem receber mais, com a nova lei de drogas aprovada no Senado. O problema é que elas não têm fiscalização adequada – pior, não há dados objetivos que mostrem a eficiência desse modelo.
Em fevereiro, o Intercept mostrou que a comunidade terapêutica onde Bernardo ficou internado tratava os usuários de drogas com uma terapia baseada na superdosagem de remédios, trabalhos forçados, castigos físicos e humilhações. Apesar de funcionar de forma irregular, desrespeitando a legislação, a Centradeq recebia verbas de famílias e prefeituras e foi selecionada para receber dinheiro do governo federal em 2019. A entidade foi interditada em novembro e o Ministério Público Federal abriu um inquérito civil para apurar as irregularidades.
Mas, segundo o ex-interno Diogo Nogueira, depois da interdição ‘as pessoas que estavam na Centradeq foram libertadas de um inferno para cair em outros’. Conversamos com mais de 20 pessoas, entre ex-internos, familiares e profissionais de saúde, para entender o que aconteceu depois do fechamento da clínica. E encontramos um rastro de desassistência e novos abusos – em outras clínicas.
Uma não, cinco internações
Matheus* é magro, tem a pele morena e o rosto aparenta menos do que os 15 anos que recentemente completou. Seus olhos se movem rapidamente e sua postura transparece inteligência. Quando fala usa gírias e a esperteza de suas frases quase esconde o toque infantil, amedrontado, que existe no fundo de sua voz.
Desde os 12 anos ele roda entre clínicas de reabilitação para usuários de drogas. Passou o último aniversário em sua quinta internação em uma comunidade terapêutica. Nascido em uma pequena cidade no interior de Minas Gerais chamada Alvinópolis, ele já passou por quase todas regiões do estado peregrinando entre clínicas. Viveu nesse vaivém não por vontade própria, mas por consequência das irregularidades flagradas nas clínicas onde foi internado pela prefeitura de sua cidade.
Matheus ficou quatro meses em tratamento na Comunidade Terapêutica DeVida, localizada em Itabirito, a 180 quilômetros de sua cidade natal, até a clínica ser interditada por submeter os internos a superdosagem de remédios e maus tratos. Depois do fechamento desta comunidade, foi encaminhado para a Centradeq-Credeq, a clínica interditada em Lagoa Santa. Logo após a interdição da outra clínica, foi mandado para a Comunidade Terapêutica Contagem Progressiva, localizada no município de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, onde relata que apanhou de monitores ao menos quatro vezes.
“O meu menino, depois de todas essas internações, ficou pior, totalmente traumatizado” conta a mãe de Matheus, Rosineia Aparecida de Oliveira.
‘Não é fácil ver filho da gente com a cabeça atordoada e não saber a quem pedir ajuda.’
Há dois meses, depois de a promotoria de Contagem notificar a entidade sobre a ilegalidade da internação de adolescentes, Matheus foi reencaminhado de volta para Alvinópolis. Agora vive em um abrigo municipal, tomando diariamente quatro remédios psiquiátricos tarja preta.
“Não é fácil ver filho da gente com a cabeça atordoada e não saber a quem pedir ajuda, se aqueles que eram para proteger os direitos do meu filho mandaram ele para esses lugares”, desabafa.
Na peregrinação de Matheus em busca de tratamento, todos os parâmetros legais foram desconsiderados. No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescentes, o ECA, define que crianças e jovens têm direito a tratamento de saúde específico para a idade, educação e convívio familiar. Em Minas Gerais, uma lei estadual proíbe a internação de menores de 18 anos em comunidades terapêuticas.
Mas Matheus foi encaminhado para cinco entidades deste tipo. Duas comunidades terapêuticas onde esteve foram interditadas por comprovação de maus-tratos. Foi retirado às pressas de três, a mando do Ministério Público. E, em pelo menos quatro, sofreu violências. Nas cinco, teve seu direito à educação negado – por isso, largou completamente os estudos. O garoto foi encaminhado para todos esses tratamentos à mando da Justiça, sob conhecimento do Conselho Tutelar e de seu município, que custeou com com dinheiro público as internações.
Internação, a única opção
Apesar de irregular, a história de Matheus está longe de ser um caso isolado. O Relatório Nacional de Inspeção em Comunidades Terapêuticas, elaborado pelo Ministério Público Federal e Conselho Federal de Psicologia em 2017, aponta que é comum o encaminhamento de adolescentes para comunidades terapêuticas via medida judicial ou através de Conselhos Tutelares. O Intercept encontrou casos de internações deste tipo em todas as regiões do país.
Como o governo não faz fiscalizações sistemáticas em comunidades terapêuticas e não possui dados consolidados sobre o tratamento que oferecem, é impossível contabilizar o número exato de adolescentes que são conduzidos a esse tipo de tratamento.
No entanto, é possível ter uma dimensão da situação a partir de levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o Ipea, que mostra que uma em cada quatro comunidades terapêuticas acolhem adolescentes no país. Ao menos 470 clínicas deste tipo recebem menores de idade.
59% das comunidades terapêuticas que recebem verba do governo não tiveram nenhum tipo de inspeção nos últimos cinco anos.
Um levantamento feito pelo Intercept via Lei de Acesso à Informação também mostrou que, nos últimos cinco anos, 390 comunidades terapêuticas receberam verbas federais – no total, mais de R$ 250 milhões. Mais da metade delas (59%) não passaram por nenhuma inspeção nesse período.
Desde o governo de Michel Temer, o país tem adotado políticas de drogas baseadas na internação, em detrimento da redução de danos. Esse tipo de abordagem vem depois de um intenso lobby dos donos de clínicas terapêuticas, que têm um ótimo trânsito no Executivo e no Legislativo – Osmar Terra, conhecido defensor da internação compulsória, é Ministro da Cidadania e a frente parlamentar em defesa da saúde mental, que puxa as discussões no Congresso, tem mais de 200 deputados, além de quatro senadores.
Foi o lobby puxado por Osmar Terra, por exemplo, que decidiu engavetar o estudo sobre drogas feito pela Fiocruz, divulgado pelo Intercept em fevereiro. O estudo, o maior do tipo já feito no Brasil, mostrou que não há uma ‘epidemia’ de drogas como alardeia o governo – mas, sim, que o álcool, por exemplo, é um problema muito mais grave. Como o resultado contrariou os interesses do governo, o estudo feito em 2017 está até hoje embargado. O ministro Osmar Terra disse que não “confia” no resultado.
Há pouco mais de duas semanas, os defensores do modelo conseguiram sua primeira grande vitória: a aprovação da nova Lei de Drogas, que transforma as comunidades terapêuticas em protagonistas no atendimento a usuários de drogas, ampliando o financiamento público que recebem. As diretrizes do SUS, até então, indicavam tratamento na Rede de Atenção Psicossocial, a Raps, e internação neste tipo de clínica como um último recurso.
O problema é que essa rede pública nunca foi suficiente. Matheus, por exemplo, nunca teve outras opções além das clínicas privadas antidrogas. A falta de estrutura da vida simples em um bairro isolado, a 36 quilômetros do centro, fez com que o garoto precisasse ‘ser retirado do ambiente para ter algum futuro’, diz a mãe. Ele é considerado ‘o caso difícil’ da cidade, que ninguém sabe muito como lidar. Rosineia gostaria que o filho tivesse a chance de ‘ir para um lugar onde pudesse receber tratamento, mas desenvolver a cabeça, sem parar de estudar, para conseguir aprender uma profissão, um dia”. Enquanto isso não acontece, ele vive em um abrigo público.
É o que tem pra hoje
Matheus deveria ir para uma Unidade de Acolhimento para Adolescentes, residências onde os jovens vivem temporariamente e recebem apoio psicológico, didático e médico. O problema é que, para todo o estado de Minas Gerais, existem só cinco delas. No país, no total, há 2,4 mil Caps – um para cada 100 mil habitantes.
Leitos hospitalares para pacientes psiquiátricos, outra opção de tratamento para situações emergenciais, são ainda mais escassos. Em 2017, o país contava com apenas 236 serviços hospitalares de referência com vagas para saúde mental habilitados. Juntas, essas unidades ofereciam apenas 1.163 leitos. Desses, 73,6% estavam concentrados nas regiões Sul e Sudeste.
Depois que a Cetreq-Centradeq foi interditada, o interno Rômulo, de 55 anos, precisou voltar para casa. Segundo sua esposa, logo que chegou passou duas semanas bebendo pelas ruas. A família, que mora em um pequeno município baiano, está desnorteada. Rômulo, que bebe desde os 12 anos, não quer se tratar. Outra família de ex-interno está em uma situação parecida. Fernanda*, irmã de Pedro*, que estava internado para tratar a dependência do álcool, conta que teve que arranjar às pressas outra internação compulsória para o irmão. “Ele chegou em casa e ficou transtornado. Quebrou o braço do meu pai no fim da primeira semana e, por mais que eu saiba que não foi por mal, não tinha como ele ficar lá”. Ela conseguiu que uma amiga lhe ajudasse a pagar outra clínica.
Nas mais de 20 entrevistas feitas para esta reportagem, frequentemente familiares de usuários apontaram as comunidades terapêuticas como ‘a opção que resta’. Mas não há evidências de que o tratamento que elas oferecem realmente funcione. Embora o governo continue injetando dinheiro nesses espaços, não há números que mostrem que essa verba está, de fato, servindo para a recuperação de dependentes.
Procurada em 2018, a Secretaria Nacional de Política Sobre Drogas, a Senad, pasta responsável pelos repasses financeiros, não apresentou levantamentos que mostrem o sucesso do tratamento oferecido pelas entidades. Entramos em contato com o órgão novamente, mas não tivemos resposta.
Em entrevista, pedimos ao atual secretário de Cuidados e Prevenção ao Uso de Drogas, Quirino Cordeiro Júnior, levantamentos sobre eficácia dos tratamentos contratados pelo órgão federal. O secretário disse que não tinha os dados, pois eles estavam em outra secretaria – a Senad. No entanto, quando procuramos a Senad, começou o empurra-empurra: fomos informadas que esse tipo de informação agora é responsabilidade da secretaria coordenada por Quirino Cordeiro, a Senapred.
A falta de transparência nos dados sobre a eficiência do serviço prestado por Comunidades Terapêuticas não afeta o discurso do governo. Em uma audiência pública em Brasília, na semana passada, Osmar Terra afirmou que a meta agora é contratar 20 mil vagas nessas entidades. Se o objetivo for alcançado, o número de entidades recebendo verbas federais duplicará.
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