Jaypee Larosa estava parado na frente de um cybercafé na cidade de Davao, um polo metropolitano na ilha de Mindanao, nas Filipinas, quando três homens usando casacos escuros chegaram em uma motocicleta e abriram fogo. Naquela noite de verão, Larosa, de 20 anos, foi morto. Segundo testemunhas, terminada a execução, um dos homens teria retirado o boné de baseball de Larosa e dito: “Filho da puta. Não é esse.” E então eles foram embora.
O assassinato de Larosa, em 17 de julho de 2008, foi mais um entre as centenas de execuções extrajudiciais praticadas em Davao, hoje uma cidade de 1,6 milhão de habitantes, enquanto seu prefeito era Rodrigo Duterte, atual presidente das Filipinas. Anos antes de lançar sua notória e sangrenta “guerra às drogas” por todo o país, Duterte comandou uma tática semelhante em nível local. Durante seu mandato na prefeitura, segundo uma investigação de 2009 conduzida pela organização Human Rights Watch, esquadrões da morte assassinaram menores em situação de rua, traficantes de drogas e criminosos de baixa periculosidade; em alguns casos, os pesquisadores encontraram indícios de cumplicidade ou envolvimento direto de agentes do governo e da polícia.
Duterte vem negando consistentemente qualquer ligação com essa matança, mas em alguns momentos seu apoio à violência é quase indisfarçável. Na qualidade de prefeito, Duterte anunciava publicamente os nomes ou as localizações de “criminosos”, e alguns deles depois apareciam mortos, de acordo com os grupos de direitos humanos e os jornais locais. O Gabinete do Ombudsman das Filipinas reconheceu parcialmente, em 2012, o papel da tolerância policial nas execuções, e constatou que 21 policiais de Davao foram “relapsos em suas obrigações” por deixar de solucioná-las. Não chegou, porém, a acusar o próprio Duterte de comportamento inadequado ou envolvimento direto.
Crianças seguram o caixão de Aldrin Pineda, de 13 anos, morto a tiros por um policial, durante seu funeral em Manila, nas Filipinas, em 14 de março de 2018.
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Sua possível cumplicidade com violações de direitos humanos, porém, não impediu a IBM de aceitar fornecer tecnologia de vigilância aos agentes da lei em Davao. Em 27 de junho de 2012, três anos depois do desolador relatório da Human Rights Watch, a IBM divulgou um breve comunicado à imprensa anunciando um acordo com Davao para realizar melhorias no centro de comando policial, com o objetivo de “aprimorar ainda mais as operações de segurança pública na cidade”. A instalação da IBM, conhecida como COI, prometia aprimorar a capacidade das autoridades de monitorar a população em tempo real com análise de vídeo de última geração, tecnologia de comunicação multicanal e veículos de patrulha com GPS. Menos de dois meses depois, a Comissão Filipina de Direitos Humanos publicou uma resolução condenando as autoridades de Davao por fomentar um “clima de impunidade” com relação às execuções, e recomendando que o Departamento Nacional de Investigação realizasse uma investigação imparcial sobre potencial obstrução de justiça pelos policiais locais. (Duterte recentemente condenou a comissão, questionou seus motivos e deu a entender que ela deveria ser extinta.)
O contrato com a IBM em 2012 foi assinado pela filha de Rodrigo Duterte, Sara Duterte, que era nominalmente a prefeita de Davao à época: seu pai, limitado pelo número de mandatos, era seu vice-prefeito. Durante o mandato de Sara Duterte, as execuções continuaram. O sistema, segundo as notícias locais, foi instalado em junho de 2013, logo quando Rodrigo Duterte estava prestes a retornar à mesma prefeitura que já havia ocupado por quase duas décadas. Sara Duterte informou ao Durian Post que o centro de comando da polícia “está agora impregnado pela tecnologia COI da IBM”, que permite à polícia “deixar de apenas reagir a eventos críticos e passar a prevê-los e evitá-los”.
Embora o Intercept e a Type Investigations não tenham conseguido localizar nenhuma referência aos esquadrões da morte de Davao nos documentos corporativos públicos da IBM sobre o programa, uma apresentação de 2014 sobre a instalação deixava claro que a IBM sabia que “drogas ilegais”, policiamento preditivo e repressão ao crime estavam entre as “áreas prioritárias” das forças de segurança de Davao. Ativistas filipinos de direitos humanos que trabalharam diretamente com a Comissão de Direitos Humanos alegam ter documentado, entre 2013 e o final de 2016, quando um agente de segurança de Davao estimou que o programa teria deixado de ser ativamente usado, pelo menos 213 execuções extrajudiciais perpetradas pelos esquadrões da morte de Davao.
Agentes públicos da cidade de Davao não responderam questões relativas ao sistema de vigilância por vídeo ou ao possível papel deste, enquanto esteve ativo, em operações de execução extrajudicial. No entanto, três policiais e agentes de segurança entrevistados no ano passado, em Davao, declararam que o programa havia investido em seus recursos de monitoramento por vídeo, que eles relataram terem se mostrado úteis na controversa guerra de Davao contra os chamados sindicatos de drogas. Relatórios de direitos humanos e ex-participantes de esquadrões da morte já demonstraram que essa guerra normalmente se voltava contra os usuários e comerciantes de pequena escala, não contra os grandes traficantes.
Amado Picardal, ex-representante de um grupo de direitos humanos com sede em Davao, chamado Aliança Contra Execuções Sumárias, tachou de “antiética” a atuação da IBM, dado que algumas das execuções estavam relacionadas à polícia de Duterte nos anos anteriores à negociação com a cidade de Davao.
A IBM se recusou a responder perguntas sobre sua associação com as violações de direitos humanos na cidade de Davao. Edward Bambini, representante da IBM, observou brevemente que a empresa “não fornece mais tecnologia para o Centro de Operações Inteligentes de Davao desde 2012″, embora tenha se recusado a esclarecer se a IBM prestou serviço de manutenção na tecnologia depois disso, e os documentos de acesso público da IBM se refiram o programa como em curso após essa data. “Um milhão e meio de cidadãos da cidade de Davao, nas Filipinas, serão os primeiros da Ásia a se beneficiarem de um Centro de Operações Inteligentes”, diz o documento de divulgação da IBM. “Um novo sistema de alerta antecipado irá monitorar indicadores-chave de risco para que as agências possam agir rapidamente antes que a situação se agrave.”
Ao longo dos anos, desde a desativação do programa da IBM, o interesse da polícia filipina em infraestrutura de vigilância de ponta se manteve. Autoridades nacionais estão agora procurando implementar tecnologia de reconhecimento facial em tempo real por todo o país, em um projeto denominado “Filipinas Seguras”, e estão avaliando tecnologias de diversos fornecedores internacionais, inclusive da empresa chinesa de telecomunicações Huawei.
Em dezembro, um jornal local noticiou que as Filipinas teriam obtido um financiamento de 20 bilhões de pesos para a instalação de milhares de câmeras de segurança na cidade de Davao e na região metropolitana de Manila. Haveria colaboração com uma empresa chinesa, numa instalação que incluiria um centro de comando nacional, e que apresentaria software de reconhecimento facial e veicular. Em uma entrevista, dada em janeiro à televisão filipina, Epimaco Densing III, subsecretário do Departamento de Interior e Governo Local, declarou que um dos objetivos do projeto é detectar rostos de suspeitos de terrorismo e evitar crimes antes que aconteçam.
Ativistas filipinos temem que tais recursos possam encorajar as violações de direitos humanos. Ao longo dos últimos três anos, partes do país sofreram declarações temporárias de lei marcial, e a “guerra às drogas” de Duterte deixou pelo menos 5 mil mortos, chegando talvez a até 27 mil (as estimativas da polícia e de grupos de direitos humanos divergem amplamente). Dentre os mortos estavam ativistas contrários a Duterte, representantes eleitos e padres católicos adeptos da franqueza. Atualmente, Duterte está em campanha para alterar a constituição, numa jogada que poderia conferir poderes ao Executivo para intensificar a eliminação de adversários políticos.
Recursos de Vigilância em Davao
Em junho de 2012, a prefeita Sara Duterte anunciou um contrato com a IBM de 128 milhões de pesos, equivalentes a pouco mais de três milhões de dólares à época, para aprimorar seus recursos de monitoramento em tempo real. O anúncio prometia “expandir” o PSSCC, com melhorias nas tecnologias de comunicação e vigilância.
Sayaji Shinde, ex-líder de vendas na IBM, que diz ter feito parte da equipe que negociou o contrato do centro de comando, lembra que sua equipe estava interessada na parceria com o governo de Duterte. “Se você olhar para os Duterte, eles dão muita importância à segurança pública”, declarou Shinde. “E acredito que esse seja um dos motores, até mesmo para nós, para ir até eles e gastar nosso tempo dando assessoria, porque vimos que eles estavam realmente interessados em assegurar que a cidade se tornasse mais segura.”
Para fechar o negócio, segundo Shinde, a IBM apontou o reconhecimento internacional que um projeto daqueles traria para Davao. “É exatamente o que vendemos a eles: ‘Vocês sabem que, se fizerem isso e trabalharem conosco, e o sistema se tornar o pioneiro do campo, isso será destacado mundialmente.'”
Na fase inicial do projeto, a IBM mapeou as câmeras de polícia de Davao em um sistema de informações geográficas, o que permitiu aos operadores acessar rapidamente os dados das câmeras nos arredores dos lugares de interesse, disse Shinde.
Ainda de acordo com o ex-funcionário da IBM, o lançamento incluía um sistema de comunicações multicanal, que permitia às equipes de polícia, controle de trânsito e de defesa se comunicarem. Trazia ainda uma tecnologia de análise de vídeo que automaticamente marcava os objetos capturados pela câmera, tais como carros e pessoas, com base em seus atributos físicos. Dentre as marcas usadas estavam tamanho, velocidade, cor, trajetória e direção do objeto, segundo uma apresentação feita pela IBM ao Asian Development Bank, em novembro de 2014, o que permitia aos operadores do centro de comando fazer uma busca pelos suspeitos nas imagens capturadas, usando suas descrições físicas. (A IBM havia refinado esses recursos de vigilância usando um acesso secreto a vídeos capturados pelas câmeras do Departamento de Polícia de Nova York, como o Intercept e a Type Investigations noticiaram em setembro.)
“Esse foi, provavelmente, o primeiro programa de vigilância com análise de vídeo usado na Ásia”, comentou Shinde, observando que o sistema poderia ser usado na sequência de assaltos ou homicídios para rastrear o carro de um suspeito antes e depois do crime. Ele destacou ainda que o software era “de muito fácil utilização”, por isso os agentes de segurança do centro de comando de Davao poderiam facilmente ter adquirido competência nos recursos de busca de objeto do programa.
Vídeo do PSSCC da cidade de Davao demonstrando a tecnolgia de “Captural Facial” da IBM.
Captura de tela: Intercept
A apresentação de 2014 da IBM sobre seu projeto de Davao também menciona uma ferramenta denominada “Captura Facial”, que recorta imagens de rostos em tempo real e armazena para análise retroativa. Numa entrevista recente, Emmanuel Jaldon, comandante do centro de emergência 911 da cidade de Davao, alegou que essa funcionalidade teria sido planejada, mas nunca foi oficialmente implementada. Barbini também alega que a IBM “nunca forneceu ao centro o recurso de reconhecimento facial”. E Shinde, que saiu da IBM em 2014, afirma que o recurso de Captura Facil não havia sido integrado enquanto ele estava presente ao longo da primeira fase do projeto de Davao. Um vídeo promocional do PSSCC, no entanto, de fevereiro de 2015, enfatizava os recursos de vigilância do centro de comando e a capacidade de “eliminar todas as formas de criminalidade”. Para isso, mostrava um clipe da interface de Captura Facial da IBM em ação, capturando imagens faciais de pedestres nas ruas da cidade de Davao. Uma filmagem do que parece ser o painel de controle da IBM em Davao, na imagem acima, mostra o programa enquadrando e coletando imagens faciais à medida que as pessoas passavam pelas câmeras na rua.
De acordo com a apresentação da IBM de 2014, o programa também ajudaria as autoridades a monitorar “comportamento de manada” e ocorrências de “vadiagem” – um crime que Duterte, como presidente, combateu duramente em âmbito nacional.
A tecnologia da IBM na “guerra ao crime” de Duterte
Quando questionado sobre as eventuais garantias que teria recebido com relação aos usos do programa de vigilância, Shinde defendeu o negócio feito pela IBM, dizendo que se destinava a atividades legítimas de segurança pública, tais como a resposta a incêndios. “Aquela implementação em particular não tinha o objetivo de rastrear pessoas”, disse. “Seu objetivo era rastrear incidentes e dar respostas mais rápidas a esses incidentes.”
Porém, em entrevistas no centro de comando, no centro de emergências 911, e em outros locais em Davao, agentes de segurança locais, familiarizados com o programa da IBM, contaram ao Intercept e à Type Investigations que a tecnologia os havia auxiliado a colocar em prática a controversa pauta anti-crime de Duterte.
Manuel Gaerlan, ex-superintendente regional da Polícia Nacional das Filipinas, disse que o centro de comando, que foi substancialmente aprimorado pela IBM, funciona como multiplicador de força em operações antidrogas. “Ele registra os eventos para que fique mais fácil identificar os autores, e então você pode ir atrás dos membros dos grupos criminosos”, explicou. “Se você consegue ver mais áreas, pode mandar patrulhas para responder. É como ter mais homens no local. E você pode colocar mais câmeras em áreas de droga.”
Jaldon, o comandante do serviço 911, indicou o recurso de marcar e buscar como a ferramenta mais útil que o programa da IBM proporcionou às autoridades policiais nas operações antidrogas, especialmente no que se refere à investigação de incidentes depois de consumados os fatos. “Depois de um evento, o sistema ajuda a encontrá-los rapidamente, dá percepção”, disse ele. “Facilita uma investigação poder segmentar por tempo, cor, tipo de característica física.” Ele disse ainda, de forma mais relevante, que os alertas em tempo real do programa poderiam aumentar a “percepção [das autoridades] da presença de suspeitos”.
Antonio Boquiren, agente de treinamento e pesquisa do centro de comando de Davao, disse que os recursos de vídeo ajudaram a polícia a endurecer a repressão contra as violações de pequeno porte relativas à qualidade de vida.
“Qualquer violação da ordem, seja por criminalidade, fumo ou travessia no local incorreto, é um crime, e a polícia é acionada”, disse ele, rindo. “As pessoas que fumam reclamam: ‘como você nos pegou antes mesmo de acendermos o cigarro?’ E o policial então aponta para a câmera.”
A perseguição a criminosos de baixa periculosidade, membros de gangues e crianças em situação de rua pelos esquadrões da morte de Davao aparece com destaque no relatório de 2009, da Human Rights Watch. E um vídeo promocional de 2015, em que a tecnologia da IBM aparece, mostra as autoridades perseguindo agressivamente os crimes de baixo potencial ofensivo. Um trecho destaca um jovem, capturado no circuito de vídeo, roubando uma mochila de um caminhão. Em outro ponto, o narrador observa que a tecnologia permite à polícia reduzir o tempo de resposta, e corta para imagens de policiais perseguindo um grupo de pessoas pela rua. Um policial então ergue o cassetete, como se fosse atingir uma delas.
Um ex-consultor de segurança do Exército das Filipinas, intimamente ligado à inteligência do país, e que solicitou anonimato por medo de represália, alega que o programa da IBM auxiliou a polícia não só a monitorar as atividades criminosas, mas também a coletar informações de inteligência sobre as atividades da oposição política em Davao. Com base nas suas relações com os agentes de segurança pública da cidade de Davao, disse que não poderia excluir a possibilidade de que os dados tenham relação com as execuções extrajudiciais.
Ativistas comemoram o Dia Internacional dos Direitos Humanos queimando uma efígie do presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, durante um protesto em Manila, em 10 de dezembro de 2017.
Foto: Noel Celis/AFP/Getty Images
Mesmo que o programa da IBM fosse usado exclusivamente para auxiliar em respostas policiais legítimas a crimes e incêndios, como Shinde alega que teria sido a intenção do projeto, pesquisadores da área de vigilância apontam que ele poderia muito bem ter facilitado as execuções extrajudiciais, simplesmente por ajudar a polícia a capturar ou monitorar continuamente os suspeitos de crimes. O governo há muito tempo nega a existência dos esquadrões da morte policiais, mas, na Davao de Duterte, vítimas de execuções extrajudiciais foram muitas vezes atingidas imediatamente depois de serem liberadas da custódia dos policiais, e a polícia frequentemente matava suspeitos durante operações planejadas.
Em outubro de 2015, por exemplo, Duterte avisou a um grupo de traficantes de drogas numa rua chamada Dewey Boulevard que eles tinham 48 horas para sair da cidade ou seriam mortos. “Se você mexe com drogas, estou avisando”, ele teria anunciado, segundo a imprensa local. “Estou dando 48 horas, 48 horas. Se vir você por lá, você será morto.” A polícia teria monitorado a área e revelado que alguns traficantes conhecidos haviam ido embora. Mas, um dia depois do alerta, a polícia atingiu e matou Armanuel Atienza, um líder comunitário de 38 anos, sob a alegação de que ele teria resistido à prisão durante uma operação “buy-and-bust” [em que policiais se fingem de usuários para prender traficantes em flagrante], e que teriam sido encontrados com ele um revólver e drogas. Essas alegações são suspeitas. De acordo com um depoimento prestado em 2016 perante o Senado por Edgar Matobato, que supostamente teria atuado como membro de um esquadrão da morte entre 1998 e 2013, a polícia de Davao frequentemente plantava armas e drogas em suspeitos depois de matá-los. (Duterte afirmou que não conhece Matobato, e deu a entender que ele pode ter cometido perjúrio em seu depoimento. O gabinete de comunicação do governo Duterte não respondeu aos questionamentos detalhados relativos ao programa da IBM, nem ao seu potencial papel em violações aos direitos humanos.)
O recurso de marcação de objetos da IBM, por exemplo, poderia ter sido usado para localizar um suspeito por suas características físicas e essa pessoa, então, poderia se tornar alvo de violência extrajudicial, como explica Kade Crockford, especialista em tecnologia na ACLU de Massachusetts, cuja pesquisa se debruça sobre a violência policial. “Talvez o sistema identifique três ou quatro pessoas, então os policiais são enviados para localizar essas pessoas”, explicou Crockford. “Talvez a pessoa não seja morta pela polícia no local, mas os policiais a interroguem sobre si e seus comparsas; agora essa pessoa e algumas das pessoas que ela indicou entram para uma lista que termina nas mãos de um esquadrão da morte.”
Postagens em mídias sociais de um chefe de departamento do PSSCC, arquivadas em um blog local, dão a entender que o centro, usando a tecnologia da IBM, seria eficaz na captura de suspeitos de crimes.
Um policial investiga uma cena de crime onde está o corpo de um suposto traficante de drogas, em uma área de favela em Manila, morto por agressores não identificados em 8 de dezembro de 2017.
Foto: Noel Celis/AFP/Getty Images
Em agosto de 2014, o mesmo oficial alegou que a polícia teria monitorado e capturado um grupo de menores de rua assaltando um motorista de táxi “por meio da coordenação” entre o PSSCC e a polícia local. Em dezembro daquele ano, afirmou que o Centro de Operações Inteligentes teria sido um fator na operação de vigilância e captura pela polícia de um homem perambulando por Davao com um revólver.
O recurso de “Captura Facial” da IBM, caso implementado, também poderia ter ajudado as autoridades locais a capturarem pessoas procuradas praticamente em tempo real – incluindo residentes em listas de observação, segundo Crockford. “Imagine um cenário em que alguém da força policial, que tenha acesso a esse sistema e atue no esquadrão da morte local, comece a produzir listas de pessoas a serem mortas”, propôs. “Essa tecnologia poderia auxiliar a liderança policial a identificar pessoas na lista de mortes em tempo real, e então enviar os esquadrões da morte até elas.”
O centro de comando de Davao, segundo uma reportagem local, já tinha recursos de reconhecimento facial instalados em 2014, embora a tecnologia não fosse atribuída à IBM. E de acordo com o relatório de 2009 da Human Rights Watch, já se sabia que os esquadrões da morte de Davao dependiam em parte das fotos de seus alvos nas listas de observação.
Em agosto de 2016, Artemio Jimenez Jr., um líder político de bairro e apoiador aberto da guerra às drogas de Duterte, entregou-se à polícia da cidade de Davao, aparentemente depois de descobrir que estava em uma lista de observação do governo por suspeita de uso de drogas. Ele se ofereceu para fazer exames de drogas para limpar seu nome. A polícia então fez exames de urina para metanfetaminas e canabinoides, segundo o The Enquirer, e os resultados foram negativos. Ainda assim, no mês seguinte, “atiradores não identificados” dirigiram até seu carro e fizeram disparos em sequência. Jimenez Jr. foi morto, e seu motorista e seu guarda-costas foram feridos. A polícia afirma que estava investigando o caso, mas nunca anunciou um suspeito ou uma motivação para o ataque. Também não explicaram como os assassinos conheciam a localização de Jimenez.
Compromissos públicos da IBM com os direitos humanos
A IBM afirma publicamente estar “comprometida com altos padrões de responsabilidade corporativa” e levar em conta “preocupações sociais” das comunidades onde atua. A Declaração de Princípios de Direitos Humanos da IBM cita diversos padrões internacionais, inclusive os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU, que demandam que as empresas façam a devida auditoria sobre o “contexto de direitos humanos anterior a uma proposta de atividade de negócios”, identifiquem “quem pode ser afetado”, e projetem “como a atividade proposta e as relações de negócios associadas poderiam ter impacto adverso de direitos humanos sobre as pessoas identificadas”. Esses padrões também exigem que as empresas acompanhem proativamente potenciais violações de direitos humanos relativas às suas atividades de negócios e exijam “envolvimento ativo” na solução das violações identificadas.
Os documentos da IBM arquivados na Securities and Exchange Commission (SEC) e seus relatórios anuais, entre 2012 e 2016, contêm algumas menções esparsas ao projeto em Davao, porém sem qualquer discussão sobre as potenciais preocupações com direitos humanos, nem sobre eventuais medidas preventivas adotadas pela empresa. Nenhum dos relatórios de responsabilidade social corporativa da IBM jamais mencionou a colaboração com Duterte em Davao.
A despeito dos relatórios da Human Rights Watch e das notícias nos jornais locais, Shinde alega que as acusações de violações de direitos humanos contra o regime de Duterte “não eram noticiadas naquela época”. Não havia “nada assim sendo dito a respeito dele naquele momento”, continuou ele, apontando que o contrato teria sido feito pela IBM com Sara Duterte, não com seu pai, que, segundo ele, “não tinha esse tipo de histórico”.
Ainda assim, quando a IBM concordou em trabalhar com o governo da família Duterte em 2012, o apoio do regime às execuções extrajudiciais em Davao estava bem estabelecido: já em 2009 ele havia descrito criminosos como “alvos legítimos de assassinato“. Em 2012, o ano em que a IBM assinou o contrato com Sara Duterte, ativistas locais de direitos humanos afirmaram ter documentado 61 execuções por esquadrões da morte.
De acordo com documentos da IBM e agentes policiais, a Polícia Nacional das Filipinas também recebia informações do centro de comando de vigilância. Ainda antes da assinatura do contrato com a IBM, a Polícia Nacional das Filipinas já havia sido criticada por deixar de investigar as execuções por esquadrões da morte, e desde que Duterte assumiu a presidência ela vem também desempenhando um papel na mortífera “guerra contra as drogas” em âmbito nacional.
“Se eles já dispunham da tecnologia na época, não tenho dúvida de que a usaram e que continuam a usá-la para localizar os alvos de extermínio”, disse Picardal, ex-membro da Aliança Contra Execuções Sumárias. “E não apenas contra usuários de drogas, mas também contra defensores dos direitos humanos, ativistas, e todos que considerem inimigos do estado.”
A IBM não tinha como não saber do histórico de Duterte na época, disse um funcionário do governo dos EUA que se recorda de ter sido informado pela IBM sobre seu projeto em Davao. “Não vejo como eles poderiam não saber. Há pessoas locais trabalhando para eles”, disse o funcionário, que pediu para manter o anonimato, porque não está autorizado a falar sobre questões do governo dos EUA.
Joshua Franco, chefe da área de tecnologia e direitos humanos da Anistia Internacional, observou que o histórico de Rodrigo Duterte como prefeito estava tão bem documentado que qualquer empresa que se envolvesse com a polícia de Davao naquela época teria a responsabilidade de investigar e evitar uma potencial cumplicidade com violações de direitos humanos antes de assinar quaisquer contratos.
“Há documentação de execuções, por pessoas que se acreditava estarem ligadas à polícia, e que aconteceram em Davao enquanto Duterte era prefeito”, disse ele. “Organizações de direitos humanos documentaram que, durante esse período, aproximadamente mil pessoas foram mortas, incluindo crianças em situação de rua, pessoas que usavam e vendiam drogas, bem como criminosos de baixo potencial ofensivo. Sem a implementação de um rigoroso processo de auditoria de direitos humanos, as empresas que tenham fornecido equipamentos e tecnologia de policiamento às forças policiais locais, suspeitas de envolvimento nas execuções, podem ter permitido ou facilitado a prática de violações de direitos humanos.”
Diante de indagações sobre as implicações de direitos humanos do programa de vigilância, oficiais das forças policiais das Filipinas que têm familiaridade com o sistema da IBM minimizaram as preocupações.
“Se a polícia praticar algumas violações de direitos humanos, quem se importa?”, disse um oficial, alegando que essas táticas resultaram em significativa redução da criminalidade.
Gaerlan, o superintendente regional de polícia, zombou da execução extrajudicial do suposto chefão do tráfico Melvin Odicta Sr., que foi morto a tiros, segundo a polícia, por dois “agressores não identificados”. A agência de Gaerlan, a Polícia Nacional das Filipinas, cogitou oficialmente que ele tenha sido morto por outros traficantes. O comandante, porém, afastou essa versão dos fatos. “Ele foi morto logo que saiu do navio”, disse ele, rindo. “Ele estava tentando escapar das autoridades, evitando vir para cá de avião. Ele nunca carrega drogas. Não é possível capturá-lo, mas ele foi morto. E não foi por ninguém de farda! Foram justiceiros, mas não estavam fardados!”
Proteções jurídicas aos acusados, tais como o devido processo legal, podem ser boas na teoria, defende Boquiren, o agente do PSSCC, mas não são práticas, em razão de um sistema judiciário que ele caracterizou como ineficiente e corrupto. “O devido processo legal é bom da perspectiva dos advogados, mas se estamos falando do sistema de justiça penal, ele é fraco. Mesmo os casos indiscutíveis de homicídio se arrastam por anos, testemunhas morrem, então há algo de errado”, disse ele.
“Se as pessoas não têm disciplina, elas não obedecem”, continuou. “Mas se há medo, elas vão obedecer.”
O presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, faz um discurso durante o evento do “Dia das Mulheres de Digong” (“Digong” é o apelido popular de Duterte), em 31 de março de 2017.
Foto: Noel Celis/AFP/Getty Images
Os planos de vigilância em massa de Duterte
Em novembro, Jaldon declarou que o programa de vigilância da IBM não estava mais em atividade em Davao. Ele disse que as autoridades haviam determinado a substituição por um sistema proprietário em 2016. Ainda assim, ele e Boquiren consideram que o modelo de centro de vigilância urbana que a IBM ajudou a construir em Davao serviu de inspiração para o governo de Duterte. “Ao longo dos próximos anos, o presidente irá replicar nosso sistema por toda a parte”, disse Boquiren em janeiro. “Toda vez que ele vai a algum lugar, diz aos líderes locais para irem a Davao e replicarem o PSSCC.”
O plano de Duterte é expandir e unificar os centros de segurança pública e resposta a emergências em nível regional e nacional nos próximos anos, disse Jaldon. “A parte mais difícil antes foram os custos orçamentários, mas eles não serão mais um problema agora que o presidente está priorizando isso.”
Jaldon e Boquiren disseram que as autoridades do país – incluindo o próprio Duterte – estão interessadas em expandir os centros de vigilância por todo o país e aprimorar seus recursos de vídeo para incluir o reconhecimento facial em tempo real, que poderia comparar os rostos de suspeitos com imagens faciais capturadas no circuito fechado de vídeo.
Em fevereiro de 2018, uma reportagem local citou fontes anônimas que indicavam que Duterte estaria buscando uma parceria com a Huawei, a empresa chinesa de telecomunicações, para fornecer tecnologia de reconhecimento facial, um desdobramento que Boquiren confirmou à época.
Então, em dezembro de 2018, o legislativo das Filipinas descobriu que uma outra empresa chinesa, a estatal China International Telecommunications and Construction Corp., havia emprestado 20 bilhões de pesos ao Departamento de Interior e Governo Local das Filipinas, para a instalação de 12 mil câmeras de vigilância em Davao e na região metropolitana de Manila. A infraestrutura “Filipinas Seguras”, segundo uma reportagem no jornal Philippine Star, incluirá um centro de comando nacional e um data center de backup, equipado com software de reconhecimento facial e veicular. Numa audiência pública no Senado, o senador Ralph Recto mostrou preocupação com o envolvimento da China no projeto, e autoridades do Departamento de Tecnologia de Informação e Comunicação do país testemunharam que não teriam sido consultadas sobre a negociação.
Diversas outras empresas chinesas haviam originalmente sido apresentadas pela Embaixada chinesa para o projeto, inclusive a Huawei. Porém, de acordo com uma resolução do Senado de janeiro de 2019, apresentada por Recto, a Huawei estava destinada a ser apenas uma subcontratada relevante como “principal fornecedora de equipamentos”.
Segundo Boquiren, a Huawei prometeu que seu produto de reconhecimento facial poderia capturar alguém “mesmo com uma imagem da lateral do rosto” e “armazenar até um milhão de rostos”. Em uma ligação em novembro de 2018, Boquiren reiterou que autoridades policiais não especificadas estavam analisando a tecnologia da Huawei, mas se recusou a discutir outros detalhes, alegando falta de conhecimento técnico. Jaldon alertou que, embora a empresa chinesa tivesse “um bom sistema”, as autoridades ainda estavam no processo de avaliação de uma série de fornecedores de reconhecimento facial, como parte da implementação do “projeto cidade segura” pelo país.
A potencial colaboração das Filipinas com empresas chinesas, que decorreu de um acordo celebrado durante a visita do presidente chinês Xi Jinping, em novembro do ano passado, reflete a guinada que Duterte colocou em curso, afastando-se dos EUA em direção à China. A Huawei, em especial, é considerada uma empresa com laços tão estreitos com a China que foi proibida de participar de contratos com o governo dos EUA e de fornecer alguns produtos de segurança para a Austrália, por medo de invasões de backdoor por agentes de inteligência chineses.
O ex-consultor do Exército filipino disse que, no seu entendimento, a instalação do programa Filipinas Seguras terá por modelo a infraestrutura de reconhecimento facial da China, unindo instalações de circuitos fechados de câmera e bancos de dados de inteligência de agências de segurança de todo o país em um sistema unificado. “O projeto visa a estabelecer novas redes de circuito fechado de vídeo e distribuí-las por todas as instalações de circuito fechado já existentes”, disse ele. “Planejado nos moldes do estado policial chinês, o sistema pretende acessar bancos de dados de diversas agências do governo e integrá-los com os fluxos de dados das redes de circuito fechado de vídeo.”
Em uma entrevista recente, o ex-consultor disse que, dado o alto nível de escrutínio a que a Huawei está sendo submetida, o Departamento de Interior e Governo Local pode optar por outro fornecedor de equipamentos tecnológicos. Densing, o oficial do Departamento de Interior, reiterou essa informação numa entrevista televisiva em janeiro.
Maya Wang, pesquisadora sênior sobre a China na Human Rights Watch, disse que a potencial adoção de uma infraestrutura de vigilância em estilo chinês, proporcionada por empresas chinesas, é muito preocupante à luz do “contexto dos crescentes abusos, da guerra às drogas e da violência extrajudicial de larga escala do governo de Duterte”. Wang alertou, no entanto, que os custos e o conhecimento exigidos para tais sistemas não são fáceis de replicar. O governo das Filipinas poderia em tese “replicar um ou alguns dos sistemas, mas não todos os sistemas de vigilância de massa superpostos e em múltiplos níveis, como encontrados na China”, esclareceu ela.
Ativistas contrários a Duterte estão preocupados com a possibilidade de que a planejada consolidação de recursos de vigilância permita às forças leais a Duterte sufocar ainda mais os bolsões de resistência política. Um sistema nacional integrado de tecnologia de reconhecimento facial em tempo real, segundo Picardal, ex-representante da Aliança Contra Execuções Sumárias, asseguraria a realização do que ele chama de “plano [de Duterte] para exercer um poder completamente autoritário/ditatorial e reprimir a divergência.” Picardal, que atualmente se encontra em local não divulgado, disse que um sistema assim também o ameaçaria pessoalmente, uma vez que ele acredita que os esquadrões da morte de Duterte querem sua cabeça. Desde que Duterte chegou ao poder em âmbito nacional, diversos outros padres dissidentes nas Filipinas foram assassinados. (Duterte negou que seja conivente com as execuções extrajudiciais enquanto presidente. Um porta-voz da Presidência disse no ano passado que Picardal deveria buscar proteção judicial caso se sinta ameaçado.)
Familiares de vítimas de execuções extrajudiciais acendem velas diante das fotografias de seus entes queridos durante uma vigília na cidade de Quezon, na Região Metropolitana de Manila, nas Filipinas, em 1º de dezembro de 2017.
Foto: Ezra Acayan/NurPhoto via Getty Images
“Eu me desloquei para um local mais seguro”, declarou ele. “Porém, com essa tecnologia, seria mais difícil para mim aparecer do lado de fora, e isso restringiria minha liberdade de movimento. Essa tecnologia não será usada apenas para localizar, prender e acusar os dissidentes em juízo, mas, pior, será usada para informar os esquadrões da morte sobre seu paradeiro.” Ele alertou que a tecnologia irá intensificar as execuções extrajudiciais, “incutir medo naqueles que se opõem ao governo”, e restringir os cidadãos em seu “direito de reunir-se livremente e requerer solução para suas insatisfações. Esse tipo de tecnologia enfraquecerá a democracia e aprofundará o regime autoritário no país.”
Desde que chegou ao poder, o governo Duterte vem tentando extinguir ou mitigar as coberturas jornalísticas críticas à sua atuação, incluindo, em janeiro, o site de notícias Rappler. Entre os assassinados, há diversos ativistas políticos. Enquanto isso, a infame “guerra às drogas” do presidente vem deixando milhares de outros mortos. “Não é apenas a matança de milhares”, alertou o ex-consultor de segurança do exército. “Isso resulta numa organização de extermínio, a polícia, que é fácil de expandir. A guerra às drogas é um espelho para um futuro mais amplo.”
Gaerlan, o comandante de polícia recém-aposentado, menosprezou essas preocupações. “Os ativistas de direitos humanos, o site Rappler, todos agem como se fosse uma ditadura, mas se for assim, diga como é que eles estão protestando e não estão sendo exterminados?”, questionou. “Obediência à lei, antes do que você acha que seja certo, acima de tudo.”
Esta reportagem foi produzida em parceria com a Type Investigations.
Tradução: Deborah Leão
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